Crise no sistema político: a herança que a ditadura nos deixou

Assistimos a mais uma crise política no período democrático. Alguns atribuem à questão moral – a exemplo de outras vezes, quando se pensava que a simples aprovação de um Código de Ética resolveria o problema.

Para sair da crise, é proposta, de forma simplista, a punição de alguns e fala-se também da necessidade de se estabelecer à fidelidade partidária, o financiamento público de campanha, o fim das coligações proporcionais, o sistema de listas partidárias, a cláusula de exclusão para os partidos políticos e um sistema eleitoral misto. Porém, não se fala num dos temas mais importantes para a reforma política, que é a distorção do sistema representativo pela falta da adoção do coeficiente eleitoral nacional, para a eleição dos deputados federais e a necessidade de tirar o papel do Senado Federal de segunda Câmara revisora, que agride o Estado de direito democrático.

Ora vejamos, o sistema mantido pela nossa Constituição Federal foi o estruturado na ditadura. No caso da Câmara dos Deputados – casa de representação do povo – determina que poderão eleger-se um mínimo de oito e um máximo de setenta deputados federais por Estado-membro. Não adotando a forma de coeficiente eleitoral nacional, que seria o de aproximadamente 220 mil votos para eleger cada deputado federal. Sistema esse em muito estruturado no período de arbítrio, com a transformação de territórios pouco populosos e pequenas economias em Estados-membros, com intenção de impedir o crescimento da oposição que vencia nos grandes centros urbanos. Tal opção acabou produzindo uma distorção, pois aproximadamente 44 milhões de eleitores elegem 263 deputados federais e 65 milhões de eleitores elegem apenas 250 deputados federais.

Os Estados-membros como Acre, Amapá e Roraima, entre outros, elegem deputados federais com um coeficiente eleitoral inferior a 40 mil votos. Enquanto outros Estados-membros como Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, elegem seus deputados federais com um coeficiente eleitoral bem superior a 220 mil votos. Tal mecanismo distorce o sistema representativo e não se justifica. Nos EUA, por exemplo, Estados-membros como Alaska, Dakota, Vermont, mais populosos que os nossos Estados menos populosos, elegem apenas um deputado federal, pois adotam um sistema aproximado de coeficiente eleitoral nacional.

O Senado Federal – casa de representação dos Estados-membros – que foi ampliado com a transformação de territórios pouco populosos e com pequenas economias, que deveria ter como atribuição discutir matérias de interesse da União e de conflitos entre as unidades federativas, mantendo o equilíbrio para o desenvolvimento das regiões. Mas, por distorção do sistema representativo, os senadores têm um dos campos de atribuições e competências dos mais amplos do mundo, podendo votar e vetar tudo, como se fosse uma segunda Câmara revisora.

A forma de impor um mínimo de três senadores por Estado-membro, gera uma distorção em que, aproximadamente, 45 milhões de eleitores elegem 59 senadores e 64 milhões de eleitores elegem apenas 22. Simbolizado na figura do senador eleito com 10 milhões de votos, tendo o mesmo peso de um senador que se elegeu com 300 mil votos. Isso é tão grave, pois o campo de atribuição e competência tão amplo acaba barrando a modernização das legislações brasileiras, pois representantes de Estados-membros poucos populosos e com economia pequena acabam impondo projetos específicos e locais, às vezes pessoais, em detrimento aos interesses estratégicos da sociedade brasileira.

Diante desse dilema, a reforma política – que seria realmente necessária – vai sendo protelada, e o eleitor brasileiro em alguns Estados-membros vale 0,5 voto, enquanto em outros vale 15,4 votos. Não é por acaso o desinteresse pelas eleições, pois a distorção do sistema representativo distancia o representante do representado, comprometendo o sistema democrático. Distanciamento que não será resolvido só com a simples implantação do sistema distrital, como afirmam alguns.

Em função dessa distorção, qualquer Presidente da República eleito pelo voto direto, por mais progressista que seja, teve, tem e terá problema de governabilidade. É só ver o caso recente do presidente Lula, eleito com 40 milhões de votos no primeiro turno. Caso tivéssemos o coeficiente eleitoral nacional, ele teria elegido uma bancada de apoio muito maior. Mas, a distorção do sistema representativo fez eleger bem menos, gerando problemas de governabilidade como com os presidente anteriores, demonstrando a aberração de não adotarmos o coeficiente eleitoral nacional. Resultando naquilo que a ditadura queria um presidencialismo de coalização, ou seja, você pensa que esta votando num presidente com um programa de governo progressista, mas nas eleições do parlamento a sociedade não percebe que elege um governo de coalização, às vezes conservador, atrasado e retrógrado. É o que assistimos na ultima eleição. E por isso é difícil governar e implantar políticas publicas voltadas para o povo por culpa desta engenharia política deixada pela ditadura e que as oligarquias regionais resistem em mudar. Pois ganharam e ganham muito com ela.

Há de se considerar também que a distorção do sistema representativo, estruturado no período de arbítrio, para evitar o avanço das oposições progressistas, acabou gerando um custo muito alto para o país manter a governabilidade, pois para garantir a maioria no parlamento, foi usado como moeda de troca à criação e a manutenção de inúmeras estruturas públicas desnecessárias no âmbito federal, estadual e municipal. Além do mais acabamos por ter um sistema representativo reformado que ajudou muito na construção de uma dívida interna e externa e um sistema previdenciário que beneficiou poucos. E, por conseqüência, a manutenção de um sistema tributário questionável e uma política de juros que onera o setor produtivo nacional e a sociedade, que são forçados a pagar a conta desta distorção.

Por isso, a sociedade brasileira deve debater a reforma política sob a ótica de um novo pacto federativo, para que se redefinam as atribuições dos senadores, o critério de composição do Senado Federal e inclua a mudança na eleição da Câmara dos Deputados. Não só sob o enfoque da reforma do sistema partidário e eleitoral. Devendo-se exigir a implantação do coeficiente eleitoral nacional, de acordo com o fundamento do princípio ?um cidadão, um voto?. Esse princípio desaguará na reforma do Estado com o objetivo de se construir, verdadeiramente, um Estado de direito democrático e, por decorrência, um novo modelo de desenvolvimento democrático para todos os brasileiros.

Geraldo Serathiuk é advogado, especialista pelo IBEJ-PR. Delegado Regional do Trabalho do Paraná. gserathiuk.drtpr@mte.gov.br

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