Criminalização conforme o estereótipo e o TJPR

Ensina Eugênio Raúl Zaffaroni que ?todas las sociedades contemporáneas que institucionalizan o formalizan el poder (estados) selecionan a un reducido grupo de personas, a las que someten a su coacción con el fin de imponerles una pena. Esta selección penalizante se llama criminalización y no se leva a cabo por azar sino como resultado de la gestión de un conjunto de agencias que conforman el llamado sistema penal. La referencia a los entes gestores de la criminalización como agencias tiene por objeto evitar otros susbstantivos más valorativos y equívocos (tales como corporaciones, burocracias, instituciones, etc). Agencia (del latín agens, participio del verbo agere, hacer) se emplea aqui en el sentido amplio y neutral de entes activos (que actúan). El processo de criminalización se desarrolla en dos etapas, denominadas respectivamente, primaria y secundaria?.

Estes processos de criminalização primária e secundária são entabulados em razão da necessidade de se impor critérios que têm a função de selecionar bens jurídicos que devam ser ?protegidos?, tutelados, bem como, buscar sancionar os indivíduos que lesionam tais bens. Portanto, criminalização primária consiste no ato de selecionar bens jurídicos relevantes que mereçam uma proteção de natureza tão drástica como as que são impostas pelo direito penal material. Quem está encarregado de efetuar a escolha dos bens jurídicos penalmente relevantes a ponto de serem protegidos pelo Direito Penal são os deputados e os senadores, enfim, o Congresso Nacional. Por sua vez, o processo de criminalização secundária se dá quando as agências encarregadas de dar execução ao programa de política criminal (polícia civil, polícia militar, Ministério Público, Poder Judiciário, etc) entabulado pelas agências de criminalização primária, é colocado em prática. A face mais aparente do processo de criminalização secundária é levada a efeito pelas polícias civis dos Estados.

Ocorre que não são poucas as ações que são criminalizadas primariamente. Tal fato faz com que a falta de capacidade operativa das agências de criminalização secundária acabe por fazer com que as polícias civis dos estados e a polícia federal, tenham que selecionar não só os bens que necessitam ser efetivamente protegidos, como, também, os indivíduos que merecem ser perseguidos pelo poder estatal. As agências de criminalização secundária neste momento iniciam um processo de desobediência ao prescrito pelo caput do artigo 5.º da Constituição da República, esquecendo-se que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Este processo é conseqüência da forma com se dá a seleção dos indivíduos que devem ser criminalizados, bem como, dos indivíduos que merecem ter proteção do poder estatal. Suponha-se que esteja acontecendo, simultaneamente, um roubo na casa do governador do Estado e um roubo na casa do Zé Ninguém (lá na favela da Vila Pinto) e a polícia civil só tenha uma viatura para atender às duas ocorrências. Quem será escolhido para ter o atendimento da única viatura da polícia civil? A resposta é óbvia. Não sejamos ingênuos. Suponha-se, agora, que ainda há uma só viatura para atender ocorrências, contudo, uma ocorrência envolve o filho de uma autoridade relevante, por exemplo, o filho de um deputado e outra o filho do Zé Ninguém. Ambos estão agredindo fisicamente pessoas numa localidade qualquer. As ações se desenvolvem em um mesmo momento e são comunicadas, também, simultaneamente, à polícia civil. Qual dos dois indivíduos será escolhido para ser criminalizado, qual dos dois indivíduos será escolhido para sentir o peso da mão estatal? Não sejamos hipócritas novamente. A resposta todos sabemos.

O que acontece na prática é que os critérios de seleção são estabelecidos em razão dos mais diversos preconceitos e idiossincrasias. Preconceitos e idiossincrasias pessoais e institucionais. Zaffaroni preleciona que ?de cualquier manera, las agencias policiales no selecionan conforme a su exclusivo critério, sino que su actividade selectiva es condicionada también por el poder de otras agencias, como las de comunicaión social, lãs políticas, los factores de poder, etc. La selección secundaria es producto de variabeles circunstancias conyuturales. La empresa criminalizante siempre está orientada por los empresários morales, que participan en las etapas de criminalización, pues sin un empresário moral las agências políticas no sancionan una nueva lei penal, y tampouco las agencias secundarias comienzan a selecionar a nuevas categorias de personas?.

O que se percebe no dia-a-dia forense é que há determinados grupos que são mais freqüentemente criminalizados. Assim como existem determinados grupos que são mais freqüentemente protegidos. O processo de criminalização secundária acaba, quase sempre, por selecionar determinados grupos de pessoas que, de acordo com suas características pessoais, são objeto direcionado das agências de criminalização secundária.

Diz Zaffaroni em sua obra: ?Los hechos más groseros cometidos por personas sin acceso positivo a la comunicacion terminan siendo proycetados por ésta como los únicos delictos y las personas seleccionadas como los únicos delincuentes. Esto último lês proporciona uma imagen comunicacional negativa, que contribuye a crear um estereótipo en el imaginário colectivo. Por tratarse de personas desvaloradas, es posible asociarle todas las cargas negativas que existen en la sociedade com forma de prejuicio, lo que terminan fijando una imagen pública del delincuente, com componente classistas, racistas, etários, de género, y estéticos?.

Comumente visualizamos com mais facilidade a seletividade se processando no âmbito das polícias civis dos estados. São as polícias civil, federal e militar que são encarregadas de efetuar a seleção inicial secundária. Contudo, isso não significa dizer que tal seleção secundária não alcance os tribunais.

No último dia 14/12/2006, na 3.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná pudemos constatar que a criminalização conforme o estereótipo ocorre onde, supostamente, não deveria acontecer, em razão do elevado nível cultural que se supõe possuírem os magistrados de Segunda Instância.

Ocorre que ao acompanharmos um colega advogado no julgamento de um recurso de apelação, fomos confundidos, pelo desembargador presidente da referida Câmara, com o réu da causa. Sabe-se lá por qual motivo. Melhor, sabe-se muito bem qual o motivo que levou ao douto Desembargador concluir que o signatário do presente texto era o réu no caso que se encontrava em análise.

Acontece que ao adentrarmos na sala onde ocorreria o julgamento do feito, sentamo-nos, os três advogados. Como é de costume o advogado informou à funcionária da Câmara o seu interesse no julgamento do feito, situação que visa dar prioridade ao julgamento da causa. Em determinado momento o Desembargador presidente da Câmara, fazendo referência ao interesse do advogado da causa no julgamento do feito, o colocou em andamento. Contudo, ressaltou que, ao que parecia, julgou que além do advogado da causa, o réu também se encontrava presente no recinto, tendo nos apontado como se fossemos o réu.

A situação foi absolutamente desagradável. Pensamos que, pelo fato de sermos negro, tenha julgado o desembargador, embora estivéssemos trajados com terno e gravata, só pudéssemos ser o réu.

Jamais pensamos estar tão arraigado na consciência de alguns de nossos magistrados, preconceitos tão reprováveis e insidiosos.

Com certeza ajusta-se a situação ao processo de criminalização conforme o estereótipo. Um exemplo real da narrativa doutrinária.

Afinal, negro acompanhando um julgamento em Câmara Criminal, só pode ser o réu.

Haroldo César Náter (hnater@terra.com.br) é negro, advogado, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.

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