Controvérsias do aporte carneluttiano sobre o conceito de verdade em Heidegger (*)

1. Apresentação

É preciso deixar claro desde já, que o presente trabalho tem o modesto objetivo de ensaiar algumas discussões sobre o conceito heideggeriano de verdade e o seu aporte feito por Francesco Carnelutti no texto “Veritá, dubbio, certezza” (1), buscando simplesmente apontar alguns dos encontros e desencontros desses dois autores.

2. Alguns aspectos dos conceito de verdade heideggeriano

Martin Heidegger ficou conhecido por estabelecer uma ruptura em relação ao conceito tradicional de verdade como adequação da realidade a um enunciado ou adequação de um enunciado à realidade.

Em seu escrito intitulado “Da essência da verdade”, de 1943, que remonta uma conferência proferida em 1930, ao tratar do conceito corrente de verdade atesta que “o verdadeiro, seja uma coisa verdadeira ou uma proposição verdadeira, é aquilo que concorda, o concordante. Ser verdadeira e verdade significam concordar e, por certo, de um duplo modo: por um lado a concordância de uma coisa com o que se presume acerca dela e por outro a coincidência do mencionado no enunciado com a coisa.” (2) Nega, portanto, a noção de verdade como conformidade, anunciada no pensamento platônico e presente tanto no discurso dos filósofos medievais como na concepção kantiana.

Note-se que Platão caracteriza o discurso verdadeiro como aquele que diz as coisas como são e falso aquele que diz as coisas como não são (correspondência). No horizonte da fé cristã, a verdade aparece como adequação das coisas ao intelecto divino ou a idéia exemplar de Deus, quer diretamente por meio da revelação, quer quando intermediada pelo intelecto humano como algo que tem sua atividade cognoscitiva ordenada de acordo com o plano divino (3) (evidência ou revelação). Com Descartes, no lugar deste plano divino coloca-se a razão universal e a verdade passa a significar concordância da coisa fática com o conceito essencial ou racional. Em Kant, a verdade ganha o significado de adequação do enunciado com a coisa ou do conhecimento com o seu objeto, segundo às regras necessárias do intelecto ou a lógica (correspondência às regras).

Em contrapartida, Heidegger assevera que todas essas noções fundadas na fórmula veritas est adaequatio intellectus et rei buscam dar conta de uma essência da verdade sem considerar que a sua determinação não é independente da interpretação da essência do homem como suporte e realizador do intellectus. Entende, deste modo, que não é possível promover esta conformação no sentido de coincidência da coisa ao enunciado ou do enunciado à coisa, pois o enunciado jamais será a coisa, mas sempre uma representação dela. Por fim, para ilustrar tal síntese cita o exemplo das moedas:

“Falamos de coincidência com distintos significados. Dizemos por exemplo na presença de duas moedas de cinco marcos sobre a mesa: coincidem reciprocamente. Ambas se correspondem na unidade de seu aspecto. Por isso têm este em comum, e por isso são iguais a esse respeito. Ademais, falamos de coincidência quando dizemos, por exemplo, de uma das moedas presentes de cinco marcos: esta moeda é redonda. Neste caso, o enunciado coincide com a coisa. Então a relação não existe entre coisa e coisa, senão entre um enunciado e uma coisa. Em que hão de coincidir a coisa e o enunciado quando os termos relacionados são abertamente distintos em seu aspecto? A moeda é de metal. O enunciado não é, como tal, material. A moeda é redonda. O enunciado não tem, como tal, a forma do espacial. Com a moeda se pode comprar algo. O enunciado acerca dela nunca é um meio de pagamento. Mas apesar de toda a desigualdade de ambos, o enunciado mencionado coincide como verdadeiro com a moeda. E este acordo deve ser uma adequação, segundo o conceito corrente de verdade. (…) Adequação não pode significar neste caso uma igualação material (dinghaft) entre coisas iguais. A essência da adequação se determina, mais precisamente, pelo modo daquela relação que impera entre enunciado e coisa. (…) O enunciado sobre a moeda <se> relaciona a esta coisa, enquanto a re-presenta (vorstellt), e diz do re-presentado (vorgestellet) como está ordenado (bestellt) com ele segundo o sentido condutor.”(4)

Ademais, o filósofo alemão ressalta que a relação do enunciado representante da coisa com a coisa se dá na medida que o enunciado que representa fala da coisa representada como ela é enquanto tal e deste modo o “assim como” se torna ao mesmo tempo o representar e o representado. Conclui, então, que re-presentar é deixar-se guiar pela coisa e obter como resultado a sua contraposição enquanto objeto, sendo que este contrapor-se, como “posto assim”, ocorre dentro da abertura realizada no comportamento dos homens. Isto é, dentro desta abertura ou desse lugar de desocultamento o ser se coloca enquanto tal e como é, tornando-se expressável ou representável, de maneira que o enunciado representante acaba submetido a ordem de dizer o ente “assim como é” e, por conseguinte, passa a ser verdadeiro. Além disso, não se pode deixar de considerar que para ele o estado de abertura do homem varia de acordo com o ente e com o modo de comportamento. Aliás, dizia que “o pensar se deixa reclamar pelo ser para dizer a verdade do ser”(5) e mais que o “estado de abertura do homem é sempre distinto, segundo a espécie do ente e o modo de comportamento”(6).

Em síntese, é possível dizer que:

“O enunciado deve pedir emprestada sua conformidade à condição de aberto do comportamento, já que somente por esta o que é manifesto pode chegar a ser, de uma maneira geral, a medida reitora de uma representação adequada. Mas o comportamento aberto deve deixar-se guiar por esta medida. Isto significa que o comportamento há de aceitar que a medida reitora de toda representação a seja previamente dada. Isto forma parte da condição de aberto do comportamento.”(7)

Desta maneira, depreende-se que para Heidegger a verdade aparece como descobrimento e não como construção ou constituição, isso implica aceitar que o pensamento humano não pode jamais converter-se em intuição criadora, pois depende do que é dado pela sensibilidade. Nesta perspectiva, pode-se dizer que as coisas estão presentes e cheias de sentido, basta que se esteja disposto a receber delas. Nas palavras do autor: “Ser verdadeiro enquanto ser-descobridor é um modo de ser presença. O que possibilita esse descobrir em si mesmo deve ser necessariamente considerado `verdadeiro’, num sentido ainda mais originário. Os fundamentos ontológico-existenciais do próprio descobrir é que mostram o fenômeno mais originário da verdade.”(8)

No pensamento heideggeriano, este “disposto a receber” remete à essência da verdade que é a liberdade, pois dispor-se significa neste caso o abrir-se, o liberar-se do homem para “deixar ser” o ente de maneira a permitir com que ele surja e se revele.

Todavia, esta liberdade ao mesmo tempo que é condição de possibilidade do desvelamento do ente abre espaço para que o homem não deixe ser o ente enquanto tal e como ele é e, conseqüentemente, faça surgir a não-verdade ou o ocultamento do ser do ente.

Isto tudo, leva-o a concluir que ao deixar-ser o ente o homem o desvela e também o oculta, por este motivo jamais atinge a sua totalidade. Em outras palavras, “o deixar-ser, ao descobrir o ente, o encobre. Esquecendo o ente em sua totalidade, o homem aplica aos entes sua própria medida. Mais exatamente, se toma ele mesmo, como sujeito, por medida de todo ente.”

Por fim, é preciso salientar que este encobrimento promovido pelo ser humano no deixar-ser o ente não é algo que decorre da inabilidade humana no ato desvelar, mas é algo que como já foi mencionado está na liberdade que constitui o próprio ser humano como tal. Nas palavras de Ernildo Stein, essa tendência da verdade para o encobrimento “não quer dizer que o ser humano é melhor ou pior, porque a tendência ao encobrimento é inevitável”(9).

3. O encontro teórico de Carnelutti e Heidegger

Após um sobrevôo sobre a concepção heideggeriana de verdade, é possível identificar, no texto “Veritá, dubbio, certezza”, as aproximações que Francesco Carnelutti faz em relação a ela quando do estudo da verdade no processo.

Num determinado momento de seu trabalho, o jurista italiano afirma que para se chegar à verdade de um ente, é preciso saber o que ele é e o que não é: “A coisa é uma parte; ela é e não é; pode ser comparada a uma moeda sobre cuja cara está gravada o seu ser e, sobre a sua coroa, o seu não ser. Mas para conhecer a verdade da coisa, ou digamos, precisamente, da parte, necessita-se conhecer, tanto a sua cara, quanto a sua coroa: uma rosa é uma rosa, ensinava a Francesco, porque não é alguma outra flor; queria dizer que para conhecer verdadeiramente a rosa, isto é, para chegar à verdade, é necessário conhecer não somente aquilo que a rosa é, mas também aquilo que ela não é. Por isso, a verdade de uma coisa nos foge até que nós não possamos conhecer todas as outras coisas e, assim, não podemos conseguir senão um conhecimento parcial dessa coisa. E quando digo uma coisa, refiro-me, também, a um homem.”(10)

Veja-se que em tal trecho ele admite no rastro do pensamento heideggeriano que o homem ao desvelar, inevitavelmente também oculta o ser do ente, o que obstaculiza o conhecimento de sua totalidade. Ademais, é com base em tal raciocínio que deflagra a impossibilidade de se chegar a verdade de um fato por meio do processo e acaba reconhecendo expressamente a agudeza do posicionamento de Calamandrei quando da polêmica provocada pelo livro do filósofo Lopez de Oñate.

Em outro ponto, os referidos autores convergem em parte, pois Carnelutti afirma que a verdade (11) “pertence ao reino da ação, não ao do pensamento, que é como dizer, ao reino da liberdade” (12), o que por Heidegger de certa forma é ressaltado quando afirma que a liberdade constitui o homem enquanto tal e por este motivo está na essência da verdade que por ele é desvelada. Entretanto, não se pode deixar de observar que o processualista italiano afirma ser a liberdade do homem condicionada ou guiada pela fé, o que é completamente estranho ao pensamento do filósofo alemão: “Se a liberdade do homem fosse abandonada a si mesma, a escolha se reduziria a um jogo de azar. Deve existir qualquer coisa que a integre, que a guie, que a ajude. Por isso, nem o problema do processo, nem o problema da ação em geral, resolvem-se sem recorrer a combinação da liberdade com a graça, segundo a mensagem cristã.” (13) Ora, para Heidegger, como se mencionou, o sentido do ser não é dado por algo metafísico mas pelo próprio ente que se apresenta ao homem cheio de sentidos e pronto para ser desvelado.

Destarte, esses são os espaços em que o aporte carneluttiano sobre o pensamento heideggeriano se faz evidente no texto referido e deixa fluir os diálogos que o processualista italiano teve com seu filho sobre a verdade das coisas.

4. O distanciamento em torno do fundamento da verdade

Apesar de explicitamente confirmar a adoção de uma concepção de verdade explorada no pensamento de Heidegger, o polêmico Carnelutti não deixa de apropriar-se ao seu modo do discurso do filósofo alemão e em vários trechos do texto sobre o qual se debruça o presente trabalho ele se distancia – e muito – da matriz que expressamente diz conduzir o seu estudo.

Inicialmente, Carnelutti dá à verdade um fundamento divino o que é incompatível com o pensamento heideggeriano, para o qual a verdade é algo que se revela no homem. Observe-se as assertivas de Carnelutti: “Em síntese, a verdade está no todo, não na parte; e o todo é demais para nós. Mais tarde isso serviu para compreender, ou ao menos tentar compreender porque Cristo disse: `Eu sou a verdade’. (…) A ciência e a fé não se devem conceber à guisa de suas linhas paralelas, as quais, diziam os matemáticos, de algum tempo, não se podem encontrar nunca, e, os matemáticos de hoje, que se podem encontrar somente no infinito. (…) Quem quiser julgar, como disse no início, não tanto o resultado dos meus estudos, quanto o seu curso, terá razão de persuadir-se que isso não se explica sem o ensinamento sublime do Evangelho.” (14) Por certo, essas ilações não ganham abrigo no pensar do Heidegger explicitado, por exemplo, na Carta dirigida a Jean Beaufret, em 1946: “A linguagem é a casa do ser. Em sua morada habita o homem. Os pensadores e poetas são os guardiães dessa morada. Sua guarda consiste em levar a cabo a manifestação do ser, na medida em que, mediante seu dizer, eles levam a linguagem e ali a custodiam.” (15)

Ademais, o processualista italiano nitidamente trata da verdade – chamada por ele de certeza – como construção e não como desvelamento, nos termos em que concebia Heidegger. Para ele, a verdade decorre de uma escolha que se inicia com um juízo simples, não verificado, expresso na fórmula: creio, mas não sei. Passa por um segundo momento em que vai em busca dos raciocínios para fundamentar esse juízo, contudo o faz sem sucesso porque se depara com insuficiência da razão humana. Finalmente, impedida de superar a dúvida faz ressurgir a crença na bondade da escolha, que integra aí a deficiência do saber e permite com que o conhecimento humano avance. Certamente, essa explicação é incompatível com o pensamento heideggeriano, para o qual a verdade se desvela no homem como presença ou ser aí e não como fruto de uma escolha marcada pela crença na bondade dos homens.

Enfim, esses são alguns dos pontos da obra de Carnelutti que demonstram o seu distanciamento de Heidegger. Com certeza há muitos mais que restaram ocultos em razão do despreparo que inevitavelmente impede o desvelar da complexidade do pensamento heideggeriano.

 

Notas

(*) Texto apresentado na disciplina Crítica do Direito Processual Penal, ministrada pelo Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, no Curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR, em 11.11.02.

(1) CARNELUTTI, Francesco. Verità, dubbio, certezza. Rivista di diritto processuale. Padova: Cedam, 1965, p. 4-9, vol. XX.

(2) HEIDEGGER, Martin. De la esencia de la verdad. Teorías de la verdad en el siglo XX. (Trad. N. Smilg e outros) (org. M. J. Frápolli y J. A. Nicolás) Madrid: Tecnos, 1997, p. 402, v. III.

(3) “La formula: veritas est adequatio rei et intellectus surge, en efecto, en el horizonte de la fe bíblica, según la cual las cosas, como creadas que son, han sido previamente concebidas por el entendimiento divino creador. Las cosas son conformes a la idea ejemplar de Dios y en este sentido son verdadras. El entendimiento human, a su vez, como facultad otorgada al hombre por Dios, se ordena en su actividad congoscitiva al plan divino de la creación. Por ello, al juzgar de las cosas, es capaz de conformarse com su idea.” (COLOMER, Eusebi. El pensamiento alemán de Kant a Heidegger. Barcelona: Herder, 1990, p. 566).

(4) HEIDEGGER, Martin. De la esencia de la verdad. Teorías de la verdad en el siglo XX. (Trad. N. Smilg e outros) (org. M. J. Frápolli y J. A. Nicolás) Madrid: Tecnos, 1997, p. 405, v. III.

(5) HEIDEGGER, Martin. Carta sobre el humanismo. (Trad. Helena Cortés e Arturo Leyte), Madrid: Alianza, 2000, p. 12.

(6) HEIDEGGER, Martin. De la esencia de la verdad. Teorías de la verdad en el siglo XX. (Trad. N. Smilg e outros) (org. M. J. Frápolli y J. A. Nicolás) Madrid: Tecnos, 1997, p. 405, v. III.

(7) COLOMER, Eusebi. El pensamiento alemán de Kant a Heidegger. Barcelona: Herder, 1990, p. 568.

(8) HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. (Trad. Márcia Sá Cavalcante) 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 288, Parte I.

(9) STEIN, Ernildo. Seminário sobre a verdade: lições preliminares sobre o parágrafo 44 de Sein und Zeit. Petrópolis: Rio de Janeiro, 1993, p. 154.

(10) CARNELUTTI, Francesco. Verità, dubbio, certezza. Rivista di diritto processuale. Padova: Cedam, 1965, p. 4-5, vol. XX.

(11) Note-se que ao falar de certeza, Carnelutti está no fundo a se referir ao conceito de verdade relativa. Neste sentido, Eduardo Cambi afirma: “Entretanto, o conceito carneluttiano de certeza, apesar de se opor à idéia de verdade absoluta (ou de verdade como sinônimo de totalidade), não se afasta da noção de verdade relativa.” CAMBI, Eduardo. Verdade processual objetivável e limites da razão jurídica iluminista. Revista de direito processual civil. Curitiba, Genesis, n. 12, abr-jun, p. 232, 1999. Para Heidegger, evidentemente, este conceito de certeza é estranho.

(12) CARNELUTTI, Francesco. Verità, dubbio, certezza. Rivista di diritto processuale. Padova: Cedam, 1965, p. 07, vol. XX.

(13) CARNELUTTI, Francesco. Verità, dubbio, certezza. Rivista di diritto processuale. Padova: Cedam, 1965, p. 08, vol. XX.

(14) CARNELUTTI, Francesco. Verità, dubbio, certezza. Rivista di diritto processuale. Padova: Cedam, 1965, p. 5-9, vol. XX.

(15) HEIDEGGER, Martin. Carta sobre el humanismo. (Trad. Helena Cortés e Arturo Leyte), Madrid: Alianza, 2000, p. 12.

Clara Maria Roman Borges

é mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Doutoranda em Direitos Humanos e Desenvolvimento na Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, Espanha. Doutoranda em Direito das Relações Sociais na UFPR. Professora de Direito Processual Penal da Unibrasil-PR.

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