Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial

O querido colega, Boleslau Sliviany, responsável pela importante seção Edições Jurídicas deste valioso caderno e cumprindo sua tarefa com assiduidade e eficiência já havia noticiado a reedição do Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial. Antes disso eu manifestara ao professor Maurício Zanoide de Moraes, um dos autores, a minha admiração por mais este trabalho coletivo. Disse-lhe que iria redigir breves comentários a respeito e lhe mandei cópia. Assim também o fiz, dias após, em relação ao desembargador Rui Stoco. E, há duas semanas, falei com o editor deste Direito e Justiça, o sensível e diligente José Guilherme Assis, propondo a publicação. Agora, no último domingo, tive a satisfação de ver que também os meus colegas, professores Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Edward Rocha de Carvalho, tiveram a mesma idéia. Eles redigiram um apropriado depoimento de exaltação à obra e seus autores, destacando, já no título que o livro é um ?capolavoro?, isto é, uma ?obra prima?.

Seria demasiada a abertura de um novo espaço, aqui mesmo no prestigiado Direito e Justiça, para outras considerações? Penso que não. Há determinadas produções do espírito humano que são anunciadas em maiores ou menores espaços publicitários, com referências positivas ou negativas. Ou são esquecidas depois de recolhidas as imagens da amostra. Mas existem outras que permanecem no mercado consumidor e nas estantes públicas e particulares. Elas interpretam a vida e o mundo de seu tempo e por isso ganham a marca da tradição e da perenidade. Assim é com muitos produtos relativos à ciência, à arte, à literatura e demais expressões da inteligência. E, justamente por isso alcançam bom sucesso e são apreciadas por um público cada vez maior.

Ao introduzir a contribuição para um livro em homenagem a Alberto Silva Franco eu disse que na teoria e na prática do Direito existem as pessoas que produzem as leis. Elas podem ser boas ou más representantes dos cidadãos na defesa dos interesses e dos bens jurídicos. Existem outras, como os magistrados, que aplicam as leis e podem ser insensíveis ou ?intermediários entre a norma e a vida? como diz o mestre de Coimbra Domingues de Andrade em sua antológica Oração de sapiência (1953), proclamando que o juiz deve ser ?o instrumento vivente que transforma o comando abstracto da lei no comando concreto da sentença?. E existem também as pessoas que foram talhadas para ensinar a natureza e o sentido das leis. São os mestres que dizem nas cátedras e os escritores que moram nas bibliotecas. E entre os escritores se destacam aqueles que comentam a lei e os julgados adotando como precedentes naturais os episódios da Divina Comédia da existência humana, feita de realidade e imaginação, de purgatórios, céus e infernos.

Alberto Silva Franco é uma dessas pessoas que após praticar, durante muito tempo, a cátedra universitária e a magistratura humanitária, escolheu o cenário fecundo das lições doutrinárias e o exercício da crítica de julgados.

Naquele texto eu me refiro à contribuição do notável escritor e a algumas de suas destacadas obras, bem como à sua atuação de organizador e analista de precedentes publicados no Código Penal e do Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial como um ?guia permanente a conduzir os operadores do Direito e da Justiça nos rumos aviventados pela discussão aberta e racionalizada que procura eliminar o universo das dúvidas e das incertezas que brotam da contradição do ser humano e da dialética do processo?.(1)

Essas virtudes e o reconhecimento da comunidade jurídica brasileira são também propriedades imateriais de Rui Stoco, o magistrado e escritor que tem oferecido aos estudiosos da ciência jurídica e aos profissionais do Direito e da Justiça obras mestras como se pode ver pelo seu portentoso Tratado de responsabilidade civil, com o selo de qualidade da Revista dos Tribunais.

Silva Franco e Rui Stoco, mais uma vez juntos, nos oferecem agora a nova edição do Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial em cinco densos volumes.

Quando iniciei os estudos do processo penal para exercer a advocacia (1961), a literatura jurídica brasileira oferecia os comentários, articolo per articolo, de mestres consagrados como Eduardo Espínola Filho (Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, Editor Borsoi); Antonio Luiz da Câmara Leal (Comentários ao Código de Processo Penal Brasileiro, Livraria Editora Freitas Bastos); Bento de Faria (Código de Processo Penal, Distribuidora Record Editora) e Hélio Tornaghi (Comentários ao Código de Processo Penal). Tempos mais tarde fiz a leitura de Borges da Rosa (Comentários ao Código de Processo Penal) e Joaquim de Sylos Cintra (Comentários ao Código de Processo Penal) e outros esparsos. De grande valia foi, também, o encontro de arestos relacionados por Hildebrando Dantas de Freitas e José Rangel de Almeida (Repertório de Jurisprudência do Código de Processo Penal, Max Limonad) e poucas outras compilações.

Mas aquelas obras e as seleções feitas pelos escritores pósteros adotaram o mesmo ponto de partida para iniciar os comentários: os primeiros artigos do código. A exegese rotineira confina a realidade e aprisiona o intérprete. O caso concreto precisa  caber dentro da equação da jurisprudência. Fora dos estreitos limites dos paradigmas normativos os operadores jurídicos nada mais podem propor para a justiça material. Esse estilo, utilizado em publicações de menor qualidade, seqüestra a imaginação  e submete o juiz e os procuradores das partes à condição de reféns de precedentes autoritários e vítimas do cativeiro legal.

Uma mudança no eixo de rotação no método e na ilustração dos comentários surge com o Código de Processo Penal e sua interpretação jurisdicional. Há uma variada oferta de bons endereços para compreender a ciência e a arte da jurisprudência. Ela deve estar ancorada num sistema de pensamento e não apenas no arrolamento numérico e seqüencial dos dispositivos. ?Como as vacas pastam no campo?, segundo a metáfora de alguém.

Para muito além das normas e das teorias subjacentes à sua elaboração, o Código de Processo Penal surge com a dinâmica interpretação dos juízes e dos tribunais. Mas existem outras qualidades dessa obra, talhada com o cinzel da verdade possível e o material da realidade palpável. O Prêmio Nobel de Literatura de 1934, Luigi Pirandello (1867-1936), demonstra a impossibilidade de existir uma visão única e certa da realidade através de uma de suas peças imortais: Così è (se vi pare). O leitor encontrará, no repertório de julgados criteriosamente separados no Código de Processo Penal a exegese que melhor possa se ajustar ao caso em exame dentre as soluções conflitantes adotadas pelos tribunais. Assim é se lhe parece ou A cada um a sua verdade, qualquer dessas traduções da comédia pirandelliana, serve de caminho para retirar das posições antagônicas aquela verdade mais próxima do bom senso e do sistema do processo. E quando os cinco alentados volumes indicam os verbetes ?possibilidade? e ?impossibilidade? o leitor irá descobrir que a contradição real ou aparente entre as decisões não é um defeito e sim uma virtude do espírito humano. Seria, por acaso, contraditório com a sua verdade íntima, Galileo Galilei (1564-1642) quando, septuagenário teve, para escapar à fogueira, de abjurar perante o Tribunal do Santo Ofício a sua pretendida heresia de que o Sol era o centro do mundo planetário e não a Terra que gira sobre si mesma no espaço? Nos registros da História e nos domínios da Ciência ecoam até hoje as últimas palavras após a retratação forçada: E pur si muove! Ali estava, apesar da opressão física e moral, a verdade. Em séculos posteriores, em outras circunstâncias, mas também movido pelo sentimento da liberdade de manifestação do pensamento perante novas Inquisições, o valoroso Pablo Neruda (1904-1973), recitou num de seus versos: ?La luz vino apesar de los puñales? (Canto general).

A alteração de rumo operada nos comentários inicia pelos temas constitucionais. O processo penal se liberta de algumas influências maléficas de princípios e regras do Direito Processual Civil assim como ocorreu com o movimento ou diretriz de pandectização do Direito Penal. Em memorável conferência, pronunciada na Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, em maio de 1949, Nélson Hungria lamentava: ?Foi deplorável a transfusão de sangue que o direito penal recebeu, sem necessidade alguma do direito civil. Os critérios civilísticos aplicados à elaboração científica do direito penal foram como gafanhotos em campo cultivado. A simbiose deu em anemia profunda do direito penal ou num produto híbrido sem fibra e sem fôlego. Nem era de esperar-se outra coisa. O direito concebido para refrear o ?anjo rebelde? que vive no homem e ajustá-lo aos imperativos éticos da vida social, não podia aliar-se ao direito que se limita à solução de litígios patrimoniais de ordem privada?.(2)

O Código de Processo Penal e a sua interpretação jurisprudencial resgata a importância e a funcionalidade social e humana dos princípios fundamentais do Direito Processual Penal a partir das indicações constitucionais. Vale transcrever joão mendes: ?O processo crimi, tem seus princísuas regras, suas leis; princípios fundamentalconsagrados nas constituições políticas; regras sciendeduzidas da natureza das cousas; leis formaldispostas para exercer sobre os juizes um despotissalutar, que lhes imponha, quasi mecanicamente a imparciali. Por isso, todas as constições políticas consagram, na declaração dos direitos do homem e do cidadão, o solemne comde que ninguem será sentensinão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior e na forma por ella regulada. As leis do processo são o complemento necessario das leis constias formalidades do processo são as actuadas garantias constitucionaes.? (3)

A distribuição dos assuntos em forma de verbetes e a nota introdutória para cada um deles constituem uma visão resumida da doutrina e da jurisprudência que serve de guia ao leitor induzindo-o a conhecer os precedentes para orientar o seu convencimento. É o juiz, o defensor, o agente do Ministério Público, o perito, o professor e o estudante que recebem uma grande carga de informações sobre o que existe de mais atual nas discussões das cortes criminais de nosso país. Um moderno repertório de acórdãos não pode se limitar à coleção de precedentes apenas do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal, ao argumento de que compete a esses órgãos, respectivamente, a uniformização de exegese da lei federal e a guarda da Constituição. Seria uma restrição intolerável aos demais tribunais do País que diariamente estão decidindo causas federais e estaduais com os inesgotáveis recursos de inteligência e sensibilidade de seus membros.

Os autores do Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial são estudiosos e profissionais altamente especializados que oferecem notável contribuição para os trabalhos acadêmicos e os serviços da administração da Justiça. Alberto Silva Franco, Carlos Vico Mañas, Dyrceu Aguiar Dias Cintra Júnior, Jefferson Ninno, José Silva Júnior, Luiz Carlos Betanho, Maria Fernanda de Toledo R. Podval, Maria Thereza Rocha de Assis Moura, Maurício Zanoide de Moraes, Roberto Podval, Rui Stoco, Sebastião Oscar Feltrim, Sérgio Mazina Martins e Tatiana Viggiani Bicudo se distribuem pelas 9.218 páginas dos cinco volumes.

Há uma lenda, referível ao imortal Luís Jimenez de Asúa, dando conta que se todos os livros de Direito Criminal fossem destruídos por uma calamidade da natureza a História e a Cultura da ciência penal estariam salvas pela conservação de seu monumental Tratado e outros livros além das inúmeras conferências que pronunciou e publicou em vários lugares do mundo. A comparação, sem favor nenhum, pode ser feita ao presente Código de Processo Penal porque a obra é fiel depositária da doutrina e da jurisprudência de várias décadas de teoria e prática. Há uma inegável tarefa missionária de evangelização em torno de princípios e regras de um sistema legal, revelando a paciência beneditina na seleção imparcial de arestos e nas anotações judiciosas. Há uma renúncia de monge trapista ao conforto pessoal e as distrações do espírito que foram trocados pelo envolvimento criador.

Ao lado e ao fundo desse processo de elaboração está a base física e o estímulo intelectual da Revista dos Tribunais que formou, na passagem dos anos, uma valorosa equipe sob as lideranças de Carlos Henrique de Carvalho Filho e Antonio Belinelo.

A consagrada editora, ao abrir as suas portas para projetos ousados porém garantidos pela qualidade da inteligência de seus idealizadores e executores, está contribuindo para que o Brasil tenha referenciais clássicos das grandes obras do espírito humano.

Notas

(1) ?A atenuante da confissão?, em Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco, RT, 2003, p. 350.

(2) ?A pandectização do Direito Penal?, em Comentários ao Código Penal, Rio de Janeiro: Forense, vol. I, tomo II, p. 448/449.     

(3) João Mendes de Almeida Junior, O Processo Criminal Brazileiro, Rio de Janeiro: Typografia Baptista de Souza, 3.ª ed., 1920, vol. I, p. 8/ 9. (Os destaques em itálico são do original bem como a ortografia).

René Ariel Dotti é advogado, professor de Direito Penal e ex-membro de Comissões do Ministério da Justiça e da Escola Nacional da Magistratura responsáveis pela redação de projetos de reforma setorial do Código de Processo Penal (1992-2000). 

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