Chico e o Leviatã

O Supremo Tribunal Federal (STF), por seis votos a três, desconsiderou o pedido encaminhado pelo procurador-geral da República, Antônio Fernando Souza, visando à paralisação das obras de transposição das águas do Rio São Francisco. Dom Luiz Cláudio Cappio, bispo da Diocese de Barra (BA), em greve de fome há 23 dias para protestar contra o referido projeto, ao saber da decisão, desmaiou, e por determinação médica foi retirado de maca para ser internado num hospital.

Repetiu-se em forma inversa a saga bíblica do pequeno Davi, que enfrentou e derrotou o gigante filisteu Golias, usando como arma um humilde estilingue. Desta vez, o gigante prevaleceu e a inflexibilidade do governo quanto ao prosseguimento das obras de transposição de parte das águas do Velho Chico foi acatada pelo Supremo Tribunal Federal, que para todos os efeitos escuda-se no respeitável princípio constitucional de não-interferência na escolha e definição das políticas públicas.

Aliás, é da natureza do Estado comportar-se como o autêntico Leviatã imaginado pelo filósofo inglês Thomas Hobbes de Malmesbury (1588-1679), ou seja, um organismo instituído por uma multidão de homens que concordam e pactuam que ?a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens?.

De acordo com o princípio de Hobbes, se o humilde bispo ribeirinho está assistido pelo direito individual de clamar – à sua maneira – contra um projeto megalomaníaco, ao ente todo-poderoso que se suporta numa interminável teia de códigos, posturas e ordenações, cuja essencialidade nem sempre está legitimada pelo rigor dos costumes e da moral pública, cabe fazer prevalecer sua indiscutível autoridade.

Hobbes se adianta na formulação e admoesta que quando alguém desobedece ao soberano está sendo injusto, mesmo se esse novo pacto for celebrado com Deus. Embora não se trate do caso pessoal do bispo de Barra, à luz do pensamento de Hobbes, nem o aspecto relevante da religiosidade invocada pelo prelado para justificar o desprendimento pela vida, quando o que está em jogo é a sorte de milhões de pessoas, seria um argumento irrespondível.

O asqueroso Leviatã exibiu suas garras afiadas na vastidão do Planalto Central.

Voltar ao topo