Chávez confirma que não renovará concessão da RCTV

O esforço de Hugo Chávez para tirar do ar a mais antiga emissora de TV da Venezuela transformou-se numa guerra de lama. No fim de 2006, depois de contar os votos que lhe deram o terceiro mandato Chávez informou que não iria renovar o certificado de funcionamento da RCTV, que se extingue em maio. Neste fim de semana, em pronunciamento na Assembléia Nacional, Chávez confirmou a decisão, apesar das pressões da cúpula da Igreja Católica e críticas da Organização dos Estados Americanos. Em tom de desprezo, declarou: ?Gritem, sapateiem, façam qualquer coisa: acabou a concessão para este canal fascista.

Em vias de transformar-se num símbolo da questão democrática na Venezuela de hoje, o detalhe da vida real é que a RCTV é uma emissora com histórico respeitável e audiência fiel. Tem tradição em novelas – exibiu o clássico O Direito de Nascer nos anos 60 – e programas de variedades. Possui um elenco de atores populares e programas humorísticos de sucesso. Não é campeã de audiência em Caracas, mas, entre as emissoras de sinal aberto, nenhuma chega a tantas cidades do interior.

Jornalismo forte

A RCTV tem um histórico de jornalismo forte, agressivo até. Para quem chega do Brasil, é como se Diogo Mainardi e Arnaldo Jabor apresentassem todos os telejornais, fizessem todas as entrevistas e comentários, e depois só chamassem os amigos para dar opinião. Os funcionários da TV dizem que essa é uma tradição da emissora, que ajudou a construir um histórico profissional honroso de conflitos com diversos governos. Muitos observadores dizem que isso até é verdade, mas a RCTV nunca foi tão crítica como agora – e é por isso, conforme visão unânime em Caracas, que o governo Chávez decidiu tirá-la do ar.

Em função das peculiaridades do adversário, nos últimos dias aliados e funcionários do governo Chávez foram à luta, num esforço para demonstrar que o episódio é uma banalidade na vida política venezuelana. De certo modo, isso é verdade. Conforme documentos divulgados pelo canal 8, a TV do governo, há 20 anos ocorreu uma barganha quando a mesma RCTV negociava a mesma concessão que vencerá em maio. O governo do presidente Jaime Lusinchi cobrou a saída do diretor do jornal impresso, Diário de Caracas, que pertencia ao mesmo grupo, para manter a concessão de TV.

Em outro depoimento, um executivo do mesmo Diário de Caracas, que mais tarde foi vendido e hoje pertence a um grupo empresarial considerado próximo a Chávez, fez uma revelação vergonhosa. Garantiu que a primeira página da publicação passou a ser definida por assessores do Palácio presidencial de Miraflores – que escolhiam qual notícia deveria ser a manchete, as reportagens que mereciam destaque e aquelas que não deveriam sair.

Há outras revelações. Rafael Caldera, antecessor de Chávez, chegou a ser classificado como um dos ?piores inimigos da liberdade de imprensa? pela Sociedade Interamericana de Imprensa. Isso porque, em 1997, um ministro de seu governo apelou aos empresários em termos inaceitáveis para que pressionassem os jornais a trocar anúncios por um noticiário favorável. Como relatou o jornal Últimas Notícias, os termos sugeridos pelo assessor presidencial foram: ?Eu tenho um interesse, e se vocês publicam notícias contra ele, não anuncio mais em sua publicação.

Tais episódios são tão constrangedores como instrutivos. Mas, ao agirem dessa forma, aliados de Chávez parecem trocar o juramento ?pátria, socialismo ou morte? pelo bordão de um velho personagem do humorista Chico Anísio, que repetia: ?Sou… mas quem não é??

?As pressões sobre os meios de comunicação sempre existiram, mas nunca foram tão fortes?, diz Ivan Ballesteros, titular de um programa da rádio da RCTV, que também está condenada. ?As emissoras resistiam como podiam. A RCTV sempre foi mais pressionada porque era a mais independente, mas nunca tivemos um governo com empenho tão claro contra a liberdade de imprensa.

Ballesteros tem um programa diário de comentários políticos. Militar reformado, participou do primeiro governo Chávez. Afastou-se fazendo denúncias de corrupção. ?Havia irregularidades, desvios, e uma grande distância entre o que se prometia e o que se fazia?, afirma. Conhecido pela linguagem dura, já foi chamado pelas autoridades da área de comunicação do governo para moderar o tom. ?Não sou o único pressionado assim?, diz. Ballesteros recorda que o governo Chávez chegou a produzir uma Lei de Conteúdo para os meios de comunicação, como uma forma de dirigir seu trabalho. ?Eles fizeram 50 artigos. Mas havia tantos erros que hoje só restaram 16 artigos.

Protesto

Na manhã de sábado, artistas, jornalistas e funcionários da RCTV se reuniram para protestar contra o fechamento da emissora. Estavam presentes personalidades, como a veterana atriz Rosário Prieto, 64 anos de idade, 47 de casa, que se prepara para sua novela número 107. A apresentadora de telejornais Nitu Pérez Osuna, uma das mais respeitadas do país, lembrou que foi ali que deu os primeiros passos na profissão. Lembrando a importância que a emissora dá ao noticiário policial, num país onde a criminalidade é uma tragédia permanente, disse que ?a RCTV é a única que tem coragem de noticiar a violência. Graças a ela, os venezuelanos sabem a realidade em que vivem e é isso que o governo quer esconder.?

Aos poucos, o ato transformou-se em outra banalidade da Venezuela, país onde todas as questões, grandes, médias, pequenas e minúsculas, acabam na figura do presidente Chávez. Um orador chegou a pedir um golpe de Estado: ?Queremos um novo 11 de abril?, disse, referindo-se à data em que Chávez foi afastado por 48 horas. A luta pela RCTV é justa, mas este argumento não parece bom começo numa campanha em nome da liberdade de imprensa e da democracia.

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