O cortador de cana e a Matrix dos direitos previdenciários adquiridos

Em um dos seus últimos discursos, o presidente Luiz Ignácio Lula da Silva utilizou a figura do cortador de cana como exemplo para confrontar a atual situação da previdência pública no Brasil. No seu discurso, Lula perguntou por que deve existir privilégio para a aposentadoria de um funcionário público em relação à do cortador de cana.

Esse raciocínio pode levar a uma discussão difundida sobre o alcance dos chamados direitos adquiridos, cuja existência é o fundamento de defesa do modelo atual das aposentadorias públicas. No linguajar de políticos de outrora, esse seria o porquê de serem “imexíveis” as situações jurídicas já estabelecidas, mesmo que isso implicasse um desequilíbrio das contas públicas. Não obstante reconhecer-se a necessidade de segurança jurídica proporcionada pelos direitos adquiridos, seria justa essa situação num país onde a média salarial de mais de 50% da população empregada (sem falar nos desempregados) não passa de dois salários mínimos mensais?

Em que pese exista e se reconheça, juridicamente, a teoria dos direitos adquiridos, não se pode deixar também de reconhecer tratar-se de uma construção abstrata. E, como dizia Hans Kelsen, advinda do mundo deontológico (dever ser) do jurista, isolado de influências sociais. Portanto, ficção ao modo da realidade contada no filme Matrix, ou seja, sua existência só é válida e legítima enquanto regra aceita pela maioria. Se as últimas pesquisas indicam que 76% dos brasileiros são a favor de reformas na previdência, o que fazer?

E por falar em Matrix, num filme onde a realidade é entendida como uma ilusão para o controle das consciências, o seu segundo episódio apresenta nuances que podem ser contextualizadas. Em uma de suas passagens, há um diálogo metafísico em que se discute a importância dos porquês nas relações de causa e efeito, pois somente aqueles receberiam valoração num mundo em que as coisas são predestinadas a ocorrer.

Ao trazer-se essa construção cinematográfica para o mundo do Direito, poder-se-ia analisar os porquês da teoria dos direitos adquiridos no modelo previdenciário brasileiro. Em termos históricos, deve-se ter em consideração que a idealização do Estado Liberal foi formulada em oposição ao Estado Absolutista então existente. Como proteção da liberdade do indivíduo, a adoção da teoria dos direitos adquiridos representava a garantia de que, após a conclusão de certas situações, o Estado não mais poderia intervir nas relações jurídicas concretizadas, devendo respeitar o que já estava estabelecido.

Em termos previdenciários, enquanto o Estado Liberal pressupunha, como fundamento de existência, uma organização não-intervencionista no meio social, ao se concluírem determinadas situações, somente competia aos governantes cumprir aquilo que foi estabelecido, mesmo que isso tivesse sido criado em detrimento dos interesses da coletividade. Lula indagou como se “garantirem aposentadorias de dezessete mil Reais em um país onde quarenta milhões de pessoas não têm o que comer?”

Pelos argumentos expostos anteriormente e sem tirar-se o mérito de interesses individuais de qualquer cargo ou situação já existente, mas adentrando a questão da justiça social, enquanto objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (previsto no Art. 3.º da Constituição Federal de 1988), há que ser contrário à reforma previdenciária atualmente proposta pelo governo.

No compasso da Teoria do Caos (uma desordem pressupõe uma nova ordem), a melhor proposta de reforma da previdência seria elevarem-se as aposentadorias dos cortadores de cana ao valor de R$ 17.000,00, assim como de todos os demais trabalhadores do Brasil (direitos adquiridos previdenciários para todos!). Com isso, espera-se que a previdência pública brasileira se declare falida e um novo modelo deva ser criado, levando-se em consideração os recursos públicos disponíveis (sem se obrigar o Estado a pagar juros abusivos visando a captar recursos canalizados a esse fim). Na mais nobre instância, poder-se-ia dividir, em partes iguais, o montante existente, aplicando-se, dessa forma, o terceiro lema da Revolução Francesa (solidariedade) até hoje incipiente.

Como na ficção do Matrix, o ideal de uma sociedade realmente justa fica na perspectiva insólita de propostas utópicas como a anterior. Não obstante, dentro da realidade atual, fica o seguinte questionamento: como se configurarem, com justiça social, os direitos previdenciários adquiridos?

Sergio Rodrigo Martinez

é doutor em Direito, professor Universitário e pesquisador. www.ensinojuridico.pro.br

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