Aspectos inovadores da propriedade no Novo Código Civil (IV-V)

Outra inovação diz respeito à colocação da “invenção”, que agora passa a ser denominada de “descoberta”. No Código Civil de 1916, estava regulada no Capítulo referente à aquisição e a perda da propriedade móvel. Já, no NCC, a “descoberta” é disciplinada logo após as disposições gerais da propriedade. Tal colocação é a mais acertada, pois o instituto não se refere à aquisição ou à perda da propriedade, uma vez que o “inventor” não adquire a propriedade do bem móvel, salvo na hipótese de abandono da coisa por parte do dono. Quem acha a coisa alheia perdida deve restituí-la ao dono ou legítimo possuidor, sob pena de responsabilização civil e penal (crime de apropriação total ou parcial de coisa alheia; art. 169, parágrafo único., inc. II, CP),(34) não se aplicando à descoberta o artigo 1.263 do NCC, o qual recai somente sobre as coisas sem dono (i.e., aquelas que nunca foram apropriadas ou foram abandonadas). Se não o conhecer ou não o encontrar o dono ou o legítimo possuidor, deve entregá-la a autoridade competente que dará conhecimento da descoberta por intermédio da imprensa e de outros meios de informação (arts. 1.170 e 1.171 do CPC). Decorrido o prazo mais de sessenta dias da divulgação pela imprensa ou do edital, a coisa será vendida em hasta pública, devendo o dinheiro obtido ser aplicado no pagamento das despesas, na recompensa do descobridor, sendo o restante recolhido aos cofres municipais, salvo quando o valor for diminuto, podendo, nesta hipótese, por uma inovação do NCC, o Município abandonar a coisa em favor de quem a achou (art. 1.237/NCC). O NCC também inova, ao tratar da recompensa (também denominada de achádego), afirmando que não poderá ser inferior a cinco por cento de seu valor, devendo o juiz levar em consideração o esforço desenvolvido pelo descobridor para encontrar o dono, ou o legítimo possuidor, as possibilidades que este teria de encontrar a coisa e a situação econômica de ambos (art. 1.234/NCC). No CC-16, pela regra contida no artigo 604, a recompensa seria fixada por critérios exclusivos do juiz. Por outro lado, o artigo 1.174 do CPC concede ao descobridor o direito de adjudicar a coisa, caso o proprietário prefira abandoná-la, estando, nesta hipótese, caracterizado um modo de aquisição da propriedade.

Em relação à aquisição da propriedade imóvel, mediante usucapião, três importantes novidades ocorreram.

Primeira, o prazo do usucapião extraordinário – que é aquele que não se exige título e boa-fé – que era de 20 anos (art. 550/CC-16) passou a ser de 15 anos (art. 1.238, caput, NCC). Este prazo, contudo, pode ser reduzido para 10 anos, se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo (art. 1.238, par. ún., NCC).

Segunda, o prazo do usucapião ordinário (aquele em que se exige justo título e boa-fé)(35) – que era de 10 anos, entre presentes, e 15 anos, entre ausentes (art. 550/CC-16) – agora é, para ambas as situações, de 10 anos (art. 1.242, caput, NCC)(36), desaparecendo a distinção entre presentes e ausentes, que dizia respeito aos domiciliados ou não no mesmo município. Presume-se de boa-fé o possuidor com justo título (art. 1.201, par. ún., NCC). Por justo título, entende-se o fato gerador da posse, compreendendo-se todo o documento capaz de transferir o domínio ao seu possuidor (v.g., escritura de compra e venda, doação, legado, arrematação, adjudicação, formal de partilha etc), não sendo indispensável que esteja registrado. Porém, o prazo de 10 anos pode ser reduzido para 5 anos, se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelado posteriormente (v.g., por vício de vontade ou por irregularidade formal), desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua morada, ou realizado investimentos de interesse social e econômico (art.

1.242, par. ún., do NCC)(37). Nesta última hipótese, está-se diante da posse-trabalho, que, para atender ao princípio da sociabilidade, reduz o prazo de usucapião.

Terceira, o NCC regulamenta, nos artigos 1.239 e 1.240, o denominado usucapião constitucional (ou qüinqüenal) rural (ou pro labore) e urbano (pro misero), previstos, respectivamente, nos artigos 191 e 183 da CF/88(38), com o escopo, mais uma vez, de prestigiar a função social da propriedade, contida, especificamente, na produtividade e na moradia. Assim, basta que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel e esteja na posse, por cinco anos, de área não superior a 250m2 (usucapião urbano) ou não superior a 50 hectares (usucapião rural), desde que nele habite ou a torne produtiva, sendo que o título de domínio pode ser conferido ao homem ou a mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. Não se exige, destarte, nem justo título nem boa-fé.

Questão interessante é saber qual deve ser o alcance da expressão “área urbana”, contida no caput do artigo 1.240 do NCC. Parece-me que, não tendo o NCC, restringido o seu alcance, é possível interpretá-lo extensivamente, desde que, obviamente, o imóvel não esteja fora do perímetro urbano. A propósito, em recente Congresso promovido pelo STJ, em 12.09.2002, comissão de juristas entendeu que, neste conceito, estão abrangidos os imóveis edificados ou não, inclusive as unidades autônomas vinculadas a condomínios edilícios.

No usucapião rural, também denominado usucapião pro labore, que apareceu em nosso direito pela primeira vez no artigo 98 do Estatuto da Terra (Lei 4.504/64), buscou-se dar um sentido social à propriedade, além de valorizar a efetiva utilização do imóvel, que se torna produtivo com o trabalho do possuidor. Assim, tutela-se um valor diverso da posse tradicional, considerando a posse acompanhada pelo trabalho (posse-trabalho), o que lhe dá um significado social ainda maior.

Interessante lembrar, quanto à posse ad usucapionem, que é necessário exigir do possuidor não somente o poder de fato sobre a coisa (corpus possessionis), mas também o animus domini (39). É, por isto, que estão excluídos da possibilidade de aquisição do direito real por intermédio da prescrição aquisitiva os detentores (art. 1.198/NCC) e aqueles que detém a coisa em virtude de uma obrigação ou de outro direito real, tal como o inquilino, o depositário, o comodatário, o credor pignoratício, o usufrutuário, o usuário e o titular do direito de habitação.

Já o NCC, no artigo 102, reproduz os artigos 183, par. 3.º, e 191, par. ún., da CF, bem como a Súmula 340/STF, proibindo a usucapião de bens públicos.

Por outro lado, os prazos do usucapião de coisa móvel são os mesmos do CC-16: três anos, com justo título ou boa-fé; cinco anos, independente de justo título e boa-fé (arts. 1.260 e 1.261/NCC).

NOTAS

(34) Se a coisa for deteriorável, age de boa-fé aquele que a vende, entregando seu valor ao dono ou à autoridade competente, pois, destarte, impede a sua perda. Cfr. Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Vol. V. 3.ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. Pág. 221.

(35) Outra pequena alteração ocorrida no NCC, em relação à diferenciação entre o usucapião extraordinário e o ordinário, foi quanto à soma das posses. O artigo 1.243 do NCC, cuja redação é um pouco diferente do artigo 552 do CC-16, apenas explicita que, no usucapião ordinário, para que o possuidor acrescente à sua posse a dos seus antecessores, deve possuí-la com justo título e boa-fé.

(36) Em relação a todas as reduções de prazo, é importante considerar que o NCC primou por esta solução, com o escopo de privilegiar a função social da propriedade, premiando o possuidor que se comporta como se proprietário fosse, que dá utilidade ao bem, em detrimento do proprietário que, além de não utilizar o bem, não impede que outrem o faça.

(37) O NCC, porém, contém regra de transição (direito intertemporal), para as hipóteses dos parágrafos únicos dos artigos 1.238 e 1.242, afim de que, independentemente do tempo transcorrido na vigência do Código anterior, seja acrescido mais dois anos: “Até dois anos após a entrada em vigor deste Código, os prazos estabelecidos no parágrafo único do art. 1.238 e no parágrafo único do art. 1.242 serão acrescidos de dois anos, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência anterior, Lei n.º 3.071, de 1.o de janeiro de 1916”.

(38) Tais modalidades de usucapião, contudo, já haviam sido previstas, com regras semelhantes, no artigo 1.o, da Lei 6.969/81, em relação aos imóveis rurais, e no artigo 9o, da Lei 10.257/2001, que trata dos imóveis urbanos.

(39) O NCC adotou, em grande parte, a teoria objetiva de Ihering, mas não desconsiderou a teoria subjetiva de Savigny, como ocorre, no artigo 1.238 do NCC, onde o exame do animus é indispensável para se caracterizar a posse ad usucapionem (é indispensável que o usucapiente tenha a intenção de possuir “como seu o imóvel”), bem como, no artigo 1.198 do NCC, na caracterização do fâmulo na posse, pois este, ao contrário do possuidor, tem o corpus, mas não o animus.

Eduardo Cambi

é mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professor de Direito Processual Civil da PUC-PR e dos cursos de mestrado da Unespar e da Unisul. Assessor jurídico do TJ/PR.

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