Aspectos inovadores da propriedade no Novo Código Civil (II-V)

Entretanto, a restrição ao direito de propriedade, pelo Estado, deve observar os limites impostos pela Constituição Federal, sob pena de se suprimir a garantia da autonomia pessoal, que é o objeto primário da atribuição dos bens em termos reais(15). Nossa Lei Fundamental limita a ação do Estado que somente pode restringir o direito à propriedade nas seguintes hipóteses: I) na instituição e cobrança de tributos, dentre as quais figura a vedação de utilizar tributo com efeito de confisco; II) na privação de bens por meio de devido processo legal, assegurada a ampla defesa e o contraditório (art. 5.o, inc. LIV e LV); III) no perdimento de bens (art. 5.o, inc. XLVI, “b”) e a expropriação, sem indenização, dos bens envolvidos no cultivo de plantas psicotrópicas e no tráfico de entorpecentes (art. 243) como modalidade de pena criminal; IV) na desapropriação assegurada, como regra, com prévia e justa indenização, e a requisição ou a ocupação temporárias, assegurada, igualmente, a indenização se houver dano (arts. 5.º, incs. XXIV e XXV, 182, par. 4.º, III, e 184)(16).

A Constituição Federal serve de vetor hermenêutico do Novo Código Civil. Pela premissa metodológica da filtragem constitucional do Direito Civil, pode se extrair da Lei Fundamental o verdadeiro norte do sentido jurídico da função social da propriedade. Assim, em relação a função social da propriedade urbana, é necessário verificar se ela atende ou não as exigências fundamentais expressas no plano diretor, podendo o Poder Público Municipal, mediante lei específica, nos termos da Lei 10.257/2001, exigir o adequado aproveitamento do solo, sob pena de promover, sucessivamente: I) o parcelamento ou edificação compulsórios; II) a imposição de IPTU progressivo(17) e, por fim, a desapropriação, mediante títulos da dívida pública, de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais (art. 182, par. 3.º e 4.º, CF). Já, em relação a função social da propriedade rural, é indispensável verificar o seu aproveitamento racional e adequado, a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, a observâncias das regras que disciplinam as relações de trabalho, além da forma de exploração, em benefício do bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (art. 186/CF). Caso contrário a propriedade rural não poderá ser considerada produtiva, dando ensejo à desapropriação para fins de reforma agrária, mediante prévia e justa indenização, em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir da sua emissão (art. 184, caput, CF), exceto se a propriedade rural for pequena ou média, não possuindo o seu proprietário outro imóvel (art. 185/CF).

Com efeito, a finalidade do NCC não é incentivar a intromissão do Estado na propriedade privada, mas apenas impor limites a ação do proprietário, quando ele extrapola a esfera de seu direito individual, exigindo a interferência do Poder Público(18).

Já o parágrafo 1.º do artigo 1.228/NCC deve ser interpretado juntamente com o artigo 187 do NCC(19) que, ao tratar do abuso do direito, afirma que comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes(20). O abuso do direito prescinde da idéia de culpa: o ato é ilícito, pois o agente, ao desconsiderar a finalidade social de seu direito subjetivo, causa dano a outrem(21). Dessa maneira, o exercício do direito de propriedade, dentro dos fins econômicos e sociais, é uma excludente de antijuridicidade e, conseqüentemente, do dever de indenizar. Ao contrário, o exercício abusivo do direito de propriedade pode ser considerado como fato gerador da responsabilidade civil(22).

No entanto, o NCC vai além de contemplar um princípio geral, tornando defeso os atos de emulação, que são aqueles que não trazem ao proprietário qualquer comodidade ou utilidade e sejam praticados com a intenção de prejudicar outrem (art. 1.228, par. 2.o). Por exemplo, condômino que ouve música além do volume considerado razoável, sabendo que seu vizinho está doente ou tem filho recém-nascido.

Nos parágrafos 4.o e 5.o do artigo 1228 do NCC, o proprietário pode ser privado da coisa, se o imóvel reivindicando consistir em extensa área há mais de cinco anos na posse, ininterrupta e de boa-fé, de considerável número de pessoas e estas nela houverem realizado obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevantes. Neste caso, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário.

É uma espécie de “usucapião especial ou coletivo”, cujos requisitos são: a) área extensa; b) posse ininterrupta e de boa-fé por mais de cinco anos (se, porém, a posse tiver início antes da vigência do NCC, o prazo de cinco anos será acrescido de mais dois anos; art. 2.030); c) número considerável de ocupantes; d) realização conjunta ou separada de obras e serviços que o juiz entenda serem de interesse social e econômico.

Tal hipótese se amolda, especialmente, as ocupações de áreas urbanas por favelados, sendo que tais regras já haviam sido contempladas pelo Estatuto da Cidade, Lei 10.257, de 10.7.2001 (art. 10, caput)(23) não obstante esta última norma se aplique somente aos imóveis urbanos e se destine à “população de baixa renda”, expressão não reproduzida no NCC. Apesar do texto contido no parágrafo 4.o do artigo 1.228 do NCC não ter sido tão explícito quanto o dispositivo correspondente constante no Estatuto da Cidade, não fazendo, inclusive, a ressalva de que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural, tal re-quisito também é essencial à caracterização da usucapião coletiva, sob pena de faltar o interesse social e econômico, que inspiraram o legislador do Novo Código Civil.

Trata-se de instituto jurídico novo e autônomo, cuja diferença essencial, em relação aos imóveis urbanos, está no tamanho, por extrapolar os 250m2 (duzentos e cinqüenta metros quadrados), previstos no artigo 183 da CF, para a usucapião especial(24). Além disto, o NCC vai além da Lei 10.257/2001, pois estende o instituto aos imóveis rurais, não contemplados no Estatuto da Cidade.

Porém, essas regras têm criado controvérsia, entendendo parcela da doutrina que se trata de criação de uma nova modalidade de desapropriação por interesse privados.

NOTAS

(15) Nas palavras de José de Oliveira Ascensão: “A garantia da autonomia pessoal é, logicamente, o objecto primário da atribuição dos bens em termos reais. E essa falharia se a conduta do sujeito fosse minuciosamente determinada pela lei ou pelos órgãos públicos, sob a alegação da garantia da função social. O que se pretende antes de mais é a colaboração com a liberdade dos indivíduos. As intervenções em nome da função social devem ser prudentes, prevendo os casos em que os titulares se desviaram flagrantemente das necessidades gerais, ou em que estas se apresentem de modo premente” (Direito Civil Reais. 5a ed. Coimbra: Coimbra editora, 1993. Pág. 201). Do mesmo modo, G. W. F. Hegel afirmava: “É na propriedade que minha vontade, como querer pessoal, torna-se objetiva, e, portanto, adquire o caráter de propriedade privada” (Princípios da filosofia do direito. Trad. de Norberto de Paula Lima. São Paulo: Ícone, 1997. Pág. 75).

(16) Cfr. Luís Roberto Barroso. A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços. Cit. Pág. 9.

* “IPTU de Porto Alegre. Progressividade. Declaratória e restituição do indébito. 1. Progressividade. O IPTU, até a EC 29/2000, estava sujeito apenas à progressividade extrafiscal com o objetivo de forçar o cumprimento da função social da propriedade, a qual dependia de lei federal, definidora de critérios uniformes em todo o território nacional (CF, art. 182, par. 4.º, II), o que só veio com a Lei 10.257, de 10-07-2001. Não lhe era aplicável, portanto, a progressividade fiscal (CF, art. 145, par. 1o)…” (TJ/RS – Reex. Nec. 70005296454 – 1.ª. C.C. – rel. Henrique Osvaldo Poeta Roenick – j. 19.03.2003).

(17) Nas palavras de Miguel Reale, o “Código Civil, procurando estabelecer limites à ação do proprietário, está, de certa maneira, prevenindo a interferência do Estado. A interferência do Estado hoje ocorre porque o proprietário não se autolimita. É exatamente o contrário que me parece que ocorre na solução do problema. (…). Quer dizer, é uma espécie de previsão: que a sociedade civil o faça antes que o Estado se lembre de fazê-lo pela força” (O projeto de Código Civil. Situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1986. Pág. 52).

(18) Sobre a interpretação do novo artigo 187, cfr., entre outros: Renan Lotufo. Código Civil comentado. Vol. I. São Paulo: Saraiva, 2003. Pág. 498-508; Heloísa Carpena. Abuso do direito no Código de 2002. Relativização na ótica civil-constitucional. In: A parte geral do Novo Código Civil. Coord. Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. Pág. 367-385.

(19) “Aunque es arriesgado dar una definición de un concepto tan impreciso, a pesar de que a primera vista parezca claro, la definición con la que la mayor parte de sus defensores estarían de acuerdo (…) es aquella que considera al abuso del derecho como `aquel acto jurídico cuyo efecto no puede ser outro que el de perjudicar a una persona, sin interés apreciable y legítimo para quien lo ejecuta’. Este acto, sostienen que no puede constituir nunca el ejercicio legítimo de un derecho, aunque pueda venir considerado como una faculdad correspondiente a un derecho, por su inmoralidad, antisocialidad, anormalidad, etc” (Juan Antonio Martínez Muñoz. Abuso del derecho? Madri: Servicio de publicaciones faculdad derecho Universidad Complutense Madrid, 1998. Pág. 85).

(20) “Prevalece na doutrina, hoje, o entendimento de que o abuso de direito prescinde da idéia de culpa. O abuso de direito ocorre quando o agente, atuando dentro dos limites da lei, deixa de considerar a sua finalidade social de seu direito subjetivo e o exorbita ao exercê-lo, causando prejuízo a outrem. Embora não haja, em geral, violação aos limites objetivos da lei, o agente desvia dos fins sociais a que esta se destina” (Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2003. Pág. 176).

(21) Cfr. Sérgio José Porto. O projeto de Código Civil e o Direito das Coisas. Cit. Pág. 48.

(22) “As áreas urbanas com mais de 250m2 (duzentos e cinqüenta metros quadrados), ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por 5 (cinco) anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural”.

(23) É importante destacar que o usucapião especial de imóvel urbano, de área ou edificação de até 250m2 (duzentos e cinqüenta metros quadrados), está regulado no artigo 9o da Lei 10.257/2001, cuja disciplina jurídica é mais rigorosa que a da usucapião coletiva, pois o parágrafo 2.o, deste artigo 9o, impede que esse direito seja reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez, o que não ocorre quanto à usucapião coletiva, disciplinada no artigo 10o, do Estatuto da Cidade.

(24) Cfr. Crítica ao anteprojeto de Código Civil. Revista forense, vol. 242, abril-maio-junho/1973, pág. 21-2.

Eduardo Cambi

é mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professor de Direito Processual Civil da PUC-PR e dos cursos de mestrado da Unespar e da Unisul. Assessor jurídico do TJ/PR.

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