As relações entre a corrupção e a sonegação

Dois casos espetaculares de corrupção e sonegação foram amplamente explorados pela mídia nos últimos dias (Mensalão e Schincariol), sem que nos déssemos adequada conta das íntimas relações entre ambos.

Em primeiro lugar é preciso notar que compra de deputados ou fraudes tributárias são exatamente o mesmo fenômeno corrupção que atinge a integridade de pilares essenciais à estabilidade do Estado democrático. Tributação, Governo e Parlamento são feitos de uma única matéria: a coisa pública.

Todo pacto democrático está estruturado, economicamente, no consentimento dos cidadãos em entregar uma parcela de seu patrimônio e de seus rendimentos para o Estado, sob a forma de tributos. Esse consentimento parte do pressuposto de que essa parcela será gerida em prol do bem comum, da manutenção da coisa pública, e não do abastecimento de interesses particulares, privados, confessáveis ou inconfessáveis.

Corromper parlamentares, desviar verbas públicas ou sonegar tributos são práticas que alteram o equilíbrio desse pacto, de um lado ao traírem a finalidade nuclear do Estado gerir por todos e para todos e, de outro, ao ferirem a noção de que todos que podem devem contribuir para a manutenção do Estado.

Nesse ambiente em que se fraturam todos os paradigmas do convívio social, dá-se um assustador quadro de reciprocidades entre a corrupção pública e a sonegação fiscal, que se resume nos seguintes tópicos:

1) A clássica Psicologia Financeira do italiano Amílcare Puviani ensina, desde 1898, que a corrupção pública gera contraimpulso contributivo, isto é, os cidadãos contribuintes deixam de acreditar na necessidade de manter uma estrutura que se apresenta corrompida.

2) A sonegação ganha um determinado nível de "aval moral", por assim dizer, pois muitos se orgulham da desobediência às normas tributárias sob a alegação de que não entregam seu dinheiro para alimentar estruturas corruptas. Em paráfrase do texto do jurista alemão Klaus Tipke, é quase lugar comum a declaração de que "não pago impostos para políticos corruptos", utilizada como pastilha de alívio da moral tributária. A sonegação passa, então, a ser elevada à categoria de "desobediência cidadã", quando, na verdade, é autêntica renúncia à própria cidadania.

3) Mais que isso: a informalidade tributária como lembra Oded Grajew do Instituto Ethos embora privada, alimenta as redes de corrupção pública, pois vultosas "doações" a políticos, por grandes empresas ou mesmo pelo crime organizado, são sempre feitas às custas de "caixa dois", que é o fruto proibido da sonegação.

4) Logo, a sonegação infiltra-se em importante parcela da vida pública, pois seu fluxo de recursos ilegais elege incontáveis parlamentares e membros do executivo em todas as esferas, a ponto de que mesmo os melhores homens públicos parecem tolerar caixas ilegais de campanha, sob pena de não se elegerem.

5) Em contrapartida, técnicos fiscais dos governos, para vencer a sonegação, adotam duas ordens de ação, uma verticalizando o ônus tributário e fazendo incidir tributos sobre quem não pode escapar, como os assalariados e os servidores públicos, e outra criando "megaoperações" de combate à sonegação.

6) Ao sobrecarregar assalariados e servidores públicos, gera-se mais distorção no pacto democrático, uma vez que se cobra cada vez mais tributos de quem menos pode e gera-se forte insatisfação popular e mais aval à sonegação, à pirataria, ao subterfúgio do "com nota ou sem nota?".

7) Já as megaoperações fisco-policiais têm por evidente propósito restaurar com a pedagogia da força o combalido impulso contributivo, instalando-se um certo ambiente de terrorismo fiscal, ornado com a prisão midiática de empresários de colarinhos e cabelos brancos, que são arrancados "à bala" de suas residências, muitas vezes, de modo escancaradamente desnecessário.    

Todos sabemos que a corrupção pública e privada não aumentou nem diminuiu, embora nos seja angustiante admitir o que sempre soubemos, mas que permanecia dissimulado pelo lenitivo da dúvida, atenuado pelo falso conforto da ignorância, encoberto pelo palco das ilusões. Ainda assim, é largamente preferível a diagnose e o combate doloroso que a corrosão encoberta e sinistra das estruturas de nossa sociedade.

A exposição do nauseante quadro público-privado choca, CPIs e operações-cevada agridem nosso senso de justiça, mas a catarse a tragédia pública é necessária enquanto veículo da purificação moral pela qual clama a democracia brasileira.

Acima disso, esse clima de inversão dos paradigmas da democracia renúncia à cidadania precisa ser combatido pela sociedade civil, responsável pelo futuro de nosso país, retomando-se o pulso e o controle das instituições políticas, não apenas através das urnas, mas da participação quotidiana, de cada um, nos processos decisórios, através de entidades civis, de Universidades, de organizações sociais não-partidárias as ONGs de toda natureza, que se organizem como um contramovimento ao esfacelamento da credibilidade pública.

A restauração e a relegitimação das relações sadias entre o público e o privado, entre o Estado e o cidadão-contribuinte, a reintegração dos frangalhos da cidadania através da distribuição justa da carga fiscal e da cobrança efetiva por um programa justo de gastos públicos é mais que um mero imperativo socioeconômico e muito mais que pura utopia acadêmica, é necessário projeto de vida, de construção de um país.

James Marins é pós-doutor em Política Jurídico-Fiscal pela Universitat de Barcelona, doutor em Direito do Estado pela PUC-SP, professor de Direito Financeiro e Tributário da PUCPR, autor do livro "Direito Processual Tributário Brasileiro" (Ed. Dialética).

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