As cooperativas de mão-de-obra: inviabilidade social, econômica e jurídica

A delegação brasileira levou à última Conferência da Organização Internacional do Trabalho, realizada em julho de 2002 em Genebra, importante contribuição concernente ao tema então debatido, qual seja, cooperativas de trabalho. Resultou daquela conferência o texto da Recomendação 193.

A efetiva atuação de nossos representantes concretizou-se no item 8.1, b, daquela recomendação, que assim estabelece:

“8.1) As políticas nacionais deveriam especialmente:

(…)

b) velar para que a criação de cooperativas não tenha por finalidade ou não se preste a evadir a legislação do trabalho nem sirva para estabelecer relações de trabalho encobertas, e combater as pseudocooperativas, que violam os direitos dos trabalhadores, assegurando que a legislação laboral se aplique a todas as empresas.”

O fato que inspirou a postura dos sindicalistas, dos representantes de empregadores e do governo brasileiros é a proliferação de cooperativas fraudulentas desde 1995 em nosso país. Isto se deu, aliás, em grande medida em razão de um texto legal, cuja interpretação literal o equipara a um verdadeiro “slogan enganoso”. Trata-se da Lei 8.949, de 09 de dezembro de 1994, que acrescentou um parágrafo único ao art. 442 da Consolidação das Leis do Trabalho, dispondo que:

“Parágrafo único. Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela.”

A interpretação açodada da norma em foco levou muitas empresas a erro, gerando milhares de ações na Justiça do Trabalho tanto de trabalhadores que se sentiram lesados, como do próprio Ministério Público, visando este último coibir condutas ilegais em prejuízo da ordem pública trabalhista.

É que a interpretação literal é o mais frágil método de apreensão da lei. Com efeito, vista sistematicamente, portanto em confronto com o conjunto dos princípios e dispositivos legais que pertinem à matéria, a norma em questão é de aplicação muito restrita. Diríamos mesmo impossível.

É que a CLT estabelece que qualquer ato que vise impedir, desvirtuar, ou fraudar a legislação do trabalho é nulo de pleno direito (art. 9.º). Logo, ao se defrontar com mecanismos formais que mascarem os elementos da relação de emprego, deve o juiz desconsiderá-los, fazendo viger todos os direitos, cuja incidência pretenda-se afastar.

Além do mais, a lei que regulamenta o cooperativismo no Brasil não reconhece cooperativas que se prestem a transferir riquezas advindas da força de trabalho tomada por terceiros, estabelecendo que o cooperado é, ao mesmo tempo, trabalhador da cooperativa e beneficiário único e direto desse trabalho (Lei 5.764/71, arts. 4.º, 6.º e 7.º). Trata-se de princípio medular do cooperativismo.

Numa cooperativa substancialmente autêntica, deste modo, os trabalhadores se associam para auferir vantagens, trabalham de forma coordenada e dividem as decisões e os resultados do próprio trabalho, firmando um processo de autogestão da produção e dos serviços, transferindo a terceiros apenas os produtos e os serviços acabados, não força de trabalho que possibilitaria a produção fora do espaço cooperativo.

Conhecem-se, no mundo cooperativo do trabalho, as cooperativas de produção e as cooperativas de serviço. As primeiras são aquelas em que os trabalhadores detêm os meios de produção e, de forma autogestionária, entregam ao mercado o produto acabado; as segundas, a seu turno, aproximam profissionais liberais ou autônomos para potencializar a captação de clientes e de recursos para a prestação dos serviços daqueles profissionais.

São exemplos as cooperativas de produtores rurais, de pequenos artesãos, de médicos, taxistas, ou de empresas que, em falência iminente, transacionam com os trabalhadores as próprias máquinas e equipamentos em troca dos direitos trabalhistas e, com aporte sindical, aqueles operários assumem a direção e passam a auferir os resultados, excluindo a atuação e os lucros do antigo empresário.

A fraude de que se cuida decorre da lei acima mencionada em razão do seu desacerto técnico-jurídico. Não é possível, legal e constitucionalmente, imaginar-se uma cooperativa para ceder mão-de-obra a empresário, livrando-o de suas responsabilidades sociais decorrentes do fato de que ele dirige esta prestação de serviços e obtém mais valia. Estes são atributos do trabalho subordinado que, por isso mesmo, implicam direitos trabalhistas inalienáveis, porque fundamentais.

Um contrato comercial entre uma cooperativa e uma empresa não pode ter como objeto o trabalho humano. Em tal situação a fraude é evidente e deve ser afastada.

O fato é que a Organização Internacional do Trabalho retratou na Recomendação 193, acima transcrita, a posição de grande parte da sociedade brasileira, no sentido de repudiar a mercancia do trabalho humano sem as proteções universais duramente conquistadas e o desvirtuamento do cooperativismo como um mecanismo de aviltamento deste mesmo trabalho humano.

As cooperativas de mão-de-obra não são condizentes com os ideais do cooperativismo e tampouco são tuteladas pela CLT, embora uma interpretação apressada possa induzir a erros, cujas conseqüências não se podem abrigar.

Ricardo Tadeu Marques da Fonseca

é procurador regional do Trabalho – 9.ª Região, professor de Direito do Trabalho das Faculdades do Brasil em Curitiba-PR, especialista e mestre em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo-SP (Fadusp) e doutorando em Direito do Trabalho pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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