Arma contra a alienação

Uma das seqüelas mais visíveis da democracia moderna, e das mais lastimáveis, é que a expressão da vontade do eleitor é uma expressão alienada. A conclusão é do conhecido psicanalista Erich Fromm, que há alguns anos tornou-se leitura obrigatória de milhares de interessados no assunto e tema da conversa de intelectuais, inclusive os pseudo.

É possível que se possa traçar um paralelo, por mais tênue, entre a afirmação de Fromm e a definição que Churchill, o velho leão inglês, tirou do bestunto para imortalizar a maneira de fazer política inventada pelos gregos. Como não disponho da íntegra da citação, reproduzo-a de memória: “A democracia é o pior dos regimes políticos, mas por enquanto não se criou nada melhor”.

Portanto, a alienação a que se refere Fromm não é corpo estranho no rol de maldades que a democracia engendrou, dentre elas a perpetuação da desigualdade social pela ascendência cada vez maior das classes privilegiadas, as únicas que têm condições de beneficiar-se das raras possibilidades de aumento da renda.

A alienação de que se fala tem raízes profundas no longo tempo histórico em que as classes subalternas sequer tiveram direito ao sufrágio – porque não tinham propriedades – e, assim, deixavam (ou eram forçadas) que os abonados tomassem decisões em seu lugar. Ao estudar-se a história do Brasil, percebe-se que desde tempos coloniais os pequenos burgos que se formavam logo passavam a contar com seu próprio resíduo dos chamados “homens bons”, enfim, cidadãos que passariam a compor câmaras e assembléias, exercer funções cartoriais, valer-se das concessões do reino e herdar títulos nobiliárquicos. E fazer grandes fortunas.

Mais tarde, quando as principais democracias reconheceram o direito ao sufrágio universal, primeiro aos homens e só depois às mulheres, apesar da esperança generalizada de que as coisas certamente teriam mudança radical para melhor, ainda vemos o mundo em que milhões de pessoas passam fome, moram em casebres imundos ou morrem, principalmente crianças e velhos, vítimas de doenças que apareceram nas eras primitivas.

Nas sociedades alienadas, ensina Fromm, o modo de as criaturas expressarem a vontade não difere muito do modo como escolhem as mercadorias que compram para satisfazer apetites e gostos, que vão do ronceiro mais ignóbil à sofisticação dos que têm o hábito superior de ler revistas especializadas em charutos, vinhos, moda e decoração. O analista lembra que para o alienado típico, basta ouvir os tambores da propaganda para deixar-se conquistar sem resistência.

A técnica mais utilizada pela propaganda é fazer com que as pessoas fiquem fascinadas pela idéia do consumo. “O ato de comprar e consumir converteu-se em uma finalidade compulsiva e irracional, porque é um fim em si, com pouca relação com o uso ou o prazer das coisas compradas e consumidas”, escreveu, acrescentando que essa, talvez, seja a explicação plausível para que se entenda a importância assumida pelo marketing no cenário político. Hoje em dia, o eleitor é induzido a escolher seu candidato como se escolhe uma mercadoria.

Mediante a manipulação de conceitos como família, formação educacional superior, carreira profissional, cargos públicos relevantes e outros badulaques, a consciência de muitas pessoas é seduzida pela mensagem subliminar que o candidato “A” é o que está, efetivamente, melhor preparado para o exercício do poder e, por isso, vai suplantar “B”. Nada mais enganoso. É possível que algumas pessoas tratem esse estímulo com certa dose de inteligência, quando o mais indicado seria o uso intensivo da razão. Fromm revela que “ao observar a qualidade do pensamento do homem alienado é surpreendente ver como se desenvolveu sua inteligência e como decaiu sua razão”.

São muitas as pessoas que aceitam a situação, inclusive na política, sem indagar o que está por trás dela. Que se deixam influenciar pelo discurso bem redigido ou pela panca cinematográfica com que certos candidatos se apresentam. Sem avaliar se estão sendo ou não ludibriadas por táticas objetivas de indução emocional. O resultado nem sempre é satisfatório, porque não se concedeu à razão o primado da melhor opção.

Em política, portanto, não é salutar permitir que outros (por melhores que sejam) decidam em nosso lugar. Que nos tratem como incapazes e nos repreendam se queremos mudar o status quo estabelecido por dinastia, mesmo que o regime seja republicano. Afinal, a verdadeira ação política se realiza na medida em que a cidadania assume a tarefa de resolver, ela mesma, os problemas que afligem a maioria. Que somos nós. E a retomada do civismo pode começar com a eleição de um prefeito capaz de sentir, ao lado do povo, suas aflições.

Ivan Schmidt é jornalista.

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