Algumas reflexões para além do trabalho subordinado: a necessária definição e organização da economia solidária no Estado do Paraná

Nos primórdios do capitalismo, as relações de trabalho assalariado – principal forma de organização do trabalho nesse sistema – levaram a um tal grau de exploração do trabalho humano que os trabalhadores organizaram-se em sindicatos e em empreendimentos cooperativados e associativos. Os sindicatos como forma de defesa e conquista de direitos dos assalariados e os empreendimentos co-operativados, de auto-gestão, como forma de trabalho alternativa à exploração assalariada.

As lutas, nesses dois campos, sempre foram complementares; entretanto a ampliação do trabalho assalariado no mundo levou a que essa forma de relação capitalista se tornasse hegemônica, transformando tudo, inclusive o trabalho humano, em mercadoria.

As demais formas (comunitárias, artesanais, individuais, familiares, cooperativadas, etc.) passaram a ser tratadas como “resquícios atrasados” que tenderiam a ser absorvidas e transformadas cada vez mais em relações capitalistas.

O recente processo de reestruturação produtiva com base tecnológica e organizacional, associado à globalização da economia e a financeirização dos capitais, tem tornado crescentes os níveis de desemprego, de modo que o enfrentamento dessa questão tem se tornado um dos maiores desafios do governo e da sociedade, tanto no que se refere à oferta quantitativa de postos de trabalho, quanto no que diz respeito à qualidade desses novos postos de trabalho.

A atual crise do trabalho assalariado, desnuda de vez a promessa do capitalismo de transformar a tudo e a todos em mercadorias a serem ofertadas e consumidas num mercado equalizado pela “competitividade”. Milhões de trabalhadores são excluídos dos seus empregos, amplia-se cada vez mais o trabalho precário. Assim, as formas de trabalho chamadas de “atrasadas” que tendiam a redução, pelo contrário, se ampliam e absorvem gradativamente o crescente contingente de excluídos.

Hoje, no Brasil, mais de 50% dos trabalhadores, estão sobrevivendo do trabalho à margem das relações de trabalho do setor capitalista hegemônico (relações assalariadas). Aquilo que era para ser absorvido pelo capitalismo, passa a ser tão grande que representa um desafio, cuja superação só pode ser enfrentada por um movimento que conjugue todas essas formas e que desenvolva um projeto alternativo que a Economia Solidária apresenta.

No Paraná, segundo o Ipardes(1), possuímos 33% da população paranaense (concentrada na mesorregião Centro-Sul do Estado e Vale do Ribeira) vivendo em municípios com IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano) inferiores ao da média nacional!

Comparativamente aos demais estados do sul do Brasil, temos o pior desempenho, posto que dos 20 municípios da região que apresentam os piores índices de desenvolvimento humano, 17 destes estão em nosso Estado.

No item ocupação de mão-de-obra, verifica-se que há uma forte diminuição da ocupação da mão-de-obra no setor rural passando de 35,5% para 24% da PEA estadual, por outro lado percebe-se o movimento de concentração da mão-de-obra na área de serviços, respondendo por 42% da PEA estadual.

Assim, na esteira dessas transformações, ao lado da queda do emprego formal, crescem os níveis de informalidade e aumentam a busca de alternativas do trabalho autônomo ou auto-emprego e, por conseqüência, surgem inúmeras formas de associativismo/cooperativismo no seio das organizações dos trabalhadores-produtores, certamente uma das principais características do trabalho do futuro.

Para fazer frente a este cenário, faz-se mister recorrer a alternativas de geração de trabalho e renda aos trabalhadores. Neste diapasão, surge a Economia Solidária, que pode ser denominada sob diversos títulos – economia social, socioeconomia solidária, humano economia, economia popular/solidária, economia do trabalho, economia de proximidade, economia de comunhão e etc., ela emerge a partir das práticas de relações econômicas e sociais que, de imediato, buscam propiciar alternativas de sobrevivência e de melhora da qualidade de vida de milhões de pessoas em diferentes partes do mundo.

Mas seu horizonte vai mais além, são práticas fundadas em relações de colaboração solidária, inspiradas por valores culturais que colocam o ser humano como sujeito e finalidade da atividade econômica, em vez da acumulação privada de riqueza em geral e de capital em particular, seus exemplos avolumam-se nas práticas comunitárias dos clubes de troca (prática adotada na agudeza da crise econômica argentina), tendo a moeda social como unidade de valor, as co-operativas de trabalho e produção autogestionárias, as empresas assumidas pelos seus empregados em razão do estágio pré ou falimentar do empreendimento econômico e que acabam mantendo o negócio no sistema de autogestão, as experiências associativas dos recicladores de lixo nos grandes centros urbanos, dentre outras.

As experiências, que se alimentam de fontes tão diversas como as práticas de reciprocidade dos povos indígenas de diversos continentes e os princípios do cooperativismo gerado em Rochdale, Inglaterra, em meados do século XIX, aperfeiçoados e recriados nos diferentes contextos socioculturais, ganharam múltiplas formas e maneiras de expressar-se.

Surge, então, a possibilidade de organização do trabalho e dos produtores dentro do campo da Economia Solidária(2), que tem por objetivo reunir diversos movimentos e iniciativas, novas e antigas, que possuem como valores comuns:

posse coletiva e gestão democrática dos meios de produção, distribuição, comercialização e crédito;

gestão da economia e das empresas subordinada às necessidades sociais e econômicas dos trabalhadores.

Sendo que a síntese possível entre o cooperativismo/associativismo, a autogestão e a economia solidária é a seguinte:

o cooperativismo e associativismo fornecem um modelo de organização, aberta e democrática, adequada aos interesses dos trabalhadores, seja para a produção, comercialização ou serviços;

A autogestão fornece a qualidade das relações de trabalho adequada aos interesses dos trabalhadores, seja em cooperativas, organizações sociais ou empresas estatais;

a economia solidária fornece o campo filosófico, político, social e econômico adequado aos interesses dos trabalhadores através da subordinação o mercado à sociedade.

O conceito de solidário, aparentemente contraditório ao de econômico, propositadamente colocado junto a este para demonstrar a possibilidade de subordinar economia à solidariedade, colocando o mercado em função da sociedade e das pessoas, porém sem extingui-lo.

A economia Solidária visa o crescimento e desenvolvimento das possibilidades pessoais e sociais, através da constituição de uma sociedade cujo Estado, Economia, mercado e Cultura satisfaçam às necessidades e desejos de toda a sociedade.

O termo economia de mercado revela a subordinação das pessoas, da sociedade e do Estado ao mercado, instância entendida na concepção liberal como o único mediador legítimo das relações entre as pessoas, pregando a força através do poder econômico, como substituta dos direitos sociais e políticos adquiridos historicamente pelos trabalhadores e garantidos por regulamentos e leis instituídas.

O contexto ora descrito, requer das instituições públicas respostas com políticas reorientadoras das linhas de inclusão social viabilizantes da inserção dos trabalhadores em formas alternativas de geração de trabalho e renda. Logo, a Economia Solidária, constitui o fundamento para o surgimento duma política pública diferenciada, constituidora de novas matrizes nas relações econômicas visando a construção de uma globalização humanizadora, de um desenvolvimento sustentável, socialmente justo e voltado para a satisfação racional das necessidades de cada um e de todos os cidadãos seguindo um caminho de desenvolvimento sustentável.

Neste contexto, surge a Senaes – Secretaria Nacional De Economia Solidária, estrutura vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego, dirigida pela maior autoridade no tema, o professor da USP, Paul Singer, e tem por missão:

Fomento à geração de trabalho e renda em atividades de economia solidária

Consolidação e constituição de políticas públicas em economia solidária

Promoção do consumo ético/justo

Política de finanças solidárias Construção do marco jurídico da economia solidáriaFomento a pesquisa acadêmica sobre economia solidária

Nessa esteira, em nosso estado, no ano de 2003, resultante da fusão da Secretaria de Estado do Emprego e Relações do Trabalho e da Secretaria da Criança e Assuntos da Família; nasce a Secretaria de Estado do Trabalho, Emprego e Promoção Social – SETP, do qual é seu titular o ex-deputado federal Padre Roque Zimmermann, onde na sua Coordenadoria de Geração de Trabalho, Emprego e Renda, aloca-se o programa de Economia Solidária que visa interagir com a Secretaria Nacional, com proposição de políticas públicas ajustadas a realidade paranaense.

No primeiro semestre de 2003, o Programa de Economia Solidária – PES, promoveu interação com os atores sociais da Economia Solidária, principalmente com a Universidade Federal do Paraná através da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares, a pós-graduação do curso de Direito da UFPR (mestrado), através do Núcleo de Estudos Direito Cooperativo e Cidadania, Agência de Desenvolvimento Solidário da CUT, Centro de Formação Irmã Araújo – Cefuria (clubes de troca) e a Anteag – Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária, Fórum Lixo e Cidadania dentre outros.

Cabe retroceder no tempo e destacar que já no mês de janeiro de 2003, com o advento do III Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, a Secretaria esteve presente nos debates referentes ao eixo temático – Desenvolvimento Local Sustentável – dialogando com todas as experiências desenvolvidas nacionalmente no campo da Economia Solidária.

Posteriormente, o programa interagiu com os gestores de políticas públicas do governo do Rio Grande do Sul, diga-se de passagem, primeira experiência de política pública estadual de Economia Solidária.

A Secretaria de Estado do Trabalho, Emprego e Promoção Social – SETP, através do Programa de Economia Solidária, promoveu em conjunto com a Secretaria de Ciência e Tecnologia nos dias 29 e 30 de maio de 2003, o seminário “Economia Solidária e Tecnologias Sociais ” com cerca de 280 participantes, dirigido ao público interno de ambas as secretarias e também, as universidades federal e universidades estaduais, e tinha como objetivo aprofundar o conhecimento do marco teórico, bem como sensibilizar as Instituições de Ensino Superior estadual acerca das possibilidades de incorporação de programa de extensão universitária com base no primado na incubagem de cooperativas populares, programa já desenvolvido pela Universidade Federal do Paraná.

Ainda, o programa, estruturou e organizou o 1.º Fórum Estadual de Economia Solidária, no dia 14 de junho, em Curitiba – na Secretaria de Estado da Cultura, onde se debateu a caminhada da Economia Solidária no estado, e ainda, escolheram-se os delegados para o Fórum Brasileiro de Economia Solidária ocorrido em Brasília – 27 a 29 de junho/2003, contando com quase 1.000 delegados de todo o Brasil.

O Fórum Brasileiro de Economia Solidária constitui-se no espaço de organização do movimento nacional de economia solidária, momento privilegiado para troca de experiências entre empreendimentos, gestores de políticas públicas e assessorias dos empreendimentos solidários. Teve os seguintes eixos temáticos:

Direito ao Trabalho Solidário;

Desenvolvimento de Cadeias Produtivas Solidárias: Produção, Comercialização e Consumo.

Criação de um Sistema de Finanças Solidárias;

Conhecimento Tecnológico a Serviço da Vida;

Educação para o Trabalho Solidário;

Inserção da Economia Solidária como Eixo de Políticas Públicas de Geração de Trabalho e Renda.

A Economia Solidária além de congregar as diversas experiências, objetiva além de responder à crise do emprego no capitalismo, também criar novos paradigmas de sociabilidade nas “práticas de economia solidária que resgatam estratégias comunitária e da cultura popular que podem recriar relacionamentos sociais mais sustentáveis em todas as dimensões do convívio humano”(3).

O ineditismo das proposi-ções de políticas públicas nacional e estadual necessita de grande divulgação do tema e articulação constante com a sociedade civil organizada, para o atingimento das populações-alvo do programa ora apresentado. A interação governamental com os agentes da economia solidária é o combustível para a consolidação desta nova organização do trabalho na economia paranaense e brasileira.

Notas

(1) Paraná: diagnóstico social e econômico: sumário executivo. Curitiba: IPARDES, 2003, 29 p.

(2)extraído da publicação caderno de formação da ADS/CUT, “O cooperativismo autêntico e a Economia Solidária”

(3) Pochmann, Marcio (org.). Desenvolvimento, trabalho e solidariedade: novos caminhos para a inclusão social. São Paulo: Cortez editora, 2002, p. 142.

Sandro Lunard Nicoladeli

é advogado, assessor técnico da SETP, mestrando em direito cooperativo e cidadania na UFPR.

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