A regra in dubio pro misero no Direito Processual do Trabalho

1. Introdução

Princípio, para Celso Antônio Bandeira de Mello, é por definição, “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”(1).

Os princípios jurídicos são, de modo geral, “as traves mestras do ordenamento jurídico do país ou de um “ramo dogmático”, usando-se a terminologia que emprega Tércio Sampaio Ferraz Júnior para denominar as disciplinas em que se desdobra a ciência do Direito”(2).

2. Princípio da proteção ao trabalhador

É o mais importante princípio do Direito do Trabalho, conceituado pelo jovem jurista Fernando Hoffmann, à luz de diversas renomadas definições, desde Salwa até Américo Plá Rodriguez, passando por Antoine Jeammaud. Luiz de Pinho Pedreira da Silva, Francisco Meton Marques de Lima, Alfredo J. Ruprecht, como “a diretriz mandamental, reitora e nuclear que inspira, informa e fundamenta o Direito do Trabalho e que tem como finalidade compensar as desigualdades econômica e jurídica existentes na relação entre capital e trabalho, mediante a criação de outras desigualdades de natureza jurídica e segundo a dignidade do trabalhador”(3).

Incide quando, existindo dúvida sobre a interpretação de uma regra jurídica de Direito do Trabalho, se opta por aquela mais benéfica ao trabalhador.

3. Regra in dubio pro misero ou in dubio pro operario?

A diferença é apenas terminológica, pois o sentido é o mesmo: regra segundo a qual, na dúvida, decide-se pela interpretação que favoreça o mais fraco na relação entre capital e trabalho (o trabalhador, operário, insuficiente econômico). Luiz de Pinho Pedreira da Silva, a respeito, só diz que pro misero trata-se de uma forma modernizada de pro operario(4).

A regra in dubio pro misero integra o princípio maior, da proteção, e foi importada para o direito do trabalho do princípio jurídico geral in dubio pro reo.

Trata-se de uma das espécies, ao lado das regras da norma mais favorável e da condição mais benéfica, do princípio da proteção, ínsito ao direito do trabalho.

4. A aplicação no direito processual do trabalho

4.1. corrente positiva

Santiago Rubinstein sustenta que “os fatos no processo do trabalho adquirem importância fundamental e obrigam os juízes à sua análise e valoração, para a obtenção da verdade e a eliminação da dúvida”(5).

Américo Plá Rodriguez é outro grande autor a defender a incidência da regra em comento relativamente a provas:

“Entendemos que as mesmas razões de desigualdade compensatória que deram origem à aplicação deste princípio justificam que se estenda à análise dos fatos, já que, em geral, o trabalhador tem muito maior dificuldade do que o empregador para provar certos fatos ou trazer dados ou obter certas informações ou documentos”.(6)

Outros nomes da doutrina estrangeira, que seguem esta mesma linha de pensamento, são: Trueba Urbina(7), Vásquez Vialard e José Isidro Somaré(8).

Alfredo J. Ruprecht faz ressalva, mas também alinha-se a esta posição, dizendo que a regra “só se deve limitar à maneira como acontecem os fatos, quer dizer, quando não há uma prova conclusiva sobre o fato alegado, mas, sim, circunstâncias que tornam presumível sua existência, razão pela qual deve inclinar-se a favor da parte mais fraca: o trabalhador”(9). E continua: “O princípio só é aplicável quando intervém dúvida sobre os alcances da prova; de maneira alguma pode ter andamento quando falta ou é insuficiente. Nestas últimas situações, o princípio é inteiramente inaplicável”.

No Brasil, Washington Luiz da Trindade tem por induvidosa a aplicação da regra pro misero no que se refere à prova, à verificação judicial dos fatos abordados na causa, por transposição do princípio do Direito Penal, em que a dúvida ou a divisão de prova favorece ao réu(10).

Não pensa diferente o festejado Ministro Mozart Victor Russomano(11).

Dentre outras vozes brasileiras a entoarem este mesmo coro, estão, ainda, as de Coqueijo Costa(12) e Luiz Pedreira da Silva(13).

Francisco Meton Marques de Lima(14), por sua vez, endossa o ponto de vista de Ruprecht.

4.2. corrente negativa

Ruiz Moreno(15), Ramíres Bosco(16) e Benito Pérez(17) são os doutrinares estrangeiros que se postam absolutamente contra a aplicação judicial da regra in dubio pro misero no processo do trabalho.

No Brasil, Manoel Antonio Teixeira Filho, em resposta à indagação quanto à possibilidade de uma sentença ter por fundamento a regra supra, quando se depara com prova dividida, é categórico em dizer que não. E explica: “O que ao juiz caberá verificar, em situações como a cogitada, é quem produziu a melhor prova. Nisso reside, efetivamente, a valoração. Sendo assim, se a melhor prova foi a do empregado, decidirá a favor deste com fulcro nessa superioridade axiológica. Fora disso, decidir favoravelmente ao trabalhador com exclusivo apoio no princípio in dubio por misero será proferir sentença frágil, inconsistente, incapaz de resistir a um ataque pela via recursal. Na dúvida, portanto, decida o órgão jurisdicional em proveito daquele que tenha produzido a melhor prova, levando em conta, à guisa de critério, o correspondente ônus que a lei atribui aos litigantes (CLT, art. 818)”(18).

Do contrário, finaliza este mesmo autor, estar-se-ia adotando uma atitude piedosa, de favor, o que não se sustenta juridicamente.

Em conseqüência, havendo dúvida do juiz em face do conjunto probatório existente e das presunções aplicáveis, seguindo o mesmo pensamento de Manoel Antonio Teixeira Filho, “ele deverá decidir em desfavor da parte que tenha o ônus da prova naquele tópico duvidoso e não segundo a diretriz genérica in dubio pro operario”.

Wilson de Souza Campos Batalha, de igual forma, é contra(19).

O jovem jurista Júlio César Bebber compartilha desta mesma idéia, asseverando:

“Tal princípio está adstrito ao campo da interpretação das normas legais, não transpondo assim as fronteiras da apreciação das provas, de forma a interferir no direito processual, onde vige o princípio da isonomia. (…)

A aplicação do princípio em matéria de valoração da prova, torna a decisão classista, e possibilita a existência de um pré-julgamento, porquanto o empregador saberá que no confronto igual entre as suas provas e as do empregado, prevalecerão sempre as deste”(20).

5. Conclusão

O ideal é que a regra in dubio pro misero caiba de modo a quebrar com os padrões normais. Tanto no direito individual, como no coletivo e no processual, da forma brilhantemente ilustrada pela Professora Aldacy Rachid Coutinho(21). Sua incidência deve se dar como um valor acolhido previamente pelo operador do direito; como uma diretiva prévia, para que, na atribuição de sentido, o elemento valorativo seja o da tutela (não apenas na dúvida, após o processo hermenêutico, mas sempre).

Por isso, com todo respeito às ilustres posições divergentes, entendemos não ter incidência para efeito de valoração da prova no processo do trabalho. A compensação da inegável desigualdade entre empregado e empregador, “deve ser outorgada por leis processuais adequadas e não pela pessoa do julgador, a poder de certos critérios subjetivos e casuísticos”(22).

Notas

(1) MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 11.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 629.

(2) SILVA, Luiz de Pinho Pedreira da. Principiologia do direito do trabalho. 2.ª ed. São Paulo: LTr, 1999. p. 11.

(3) HOFFMANN, Fernando. O princípio da proteção ao trabalhador e a atualidade brasileira. São Paulo: LTr, 2003. p. 61.

(4) SILVA, Luiz de Pinho Pedreira da. Principiologia do direito do trabalho. 2.ª ed. São Paulo: LTr, 1999. p. 41.

(5) RUBINSTEIN, Santiago. O princípio in dubio, pro operario é inaplicável em matéria de prova. In: Revista Trabajo y Seguridad Social. Buenos Aires, novembro/73. Tomo I. p. 56. Apud RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. 3. ed. atual. São Paulo: LTr, 2002. p. 114.

(6) RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. 3.ª ed. atual. São Paulo: LTr, 2002. p. 115.

(7) URBINA, Trueba. Nuevo Derecho Procesal del Trabajo. México, 1971. p. 43-44. Apud RUPRECHT, Alfredo J. Ob. cit. p. 17.

(8) PASCO, Mario. Fundamentos do direito processual do trabalho. São Paulo: LTr, 1997. p. 77.

(9) RUPRECHT, Alfredo J. Os princípios do direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1995. p. 18.

(10) TRINDADE, Washington Luiz da. Regras de aplicação e de interpretação no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1995. p. 89.

(11) RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à CLT. Rio Forense, p. 44.

(12) COSTA, Coqueijo. Princípios de direito processual do trabalho. São Paulo: LTr, 1976. p. 17.

(13) SILVA, Luiz Pedreira da. Princípios jurídicos específicos do direito do trabalho. Apud LIMA, Francisco Meton Marques de. Ob. cit. p. 83.

(14) LIMA, Francisco Meton Marques de. Princípios de direito do trabalho na lei e na jurisprudência. São Paulo: LTr, 1994. p. 84.

(15) MORENO, Ruiz. El principio in dubio pro operario, una institución inactual. In: Revista Derecho del Trabajo. Argentina, agosto/86. p. 1.115. Apud RODRIGUEZ, Américo Plá. Ob. cit. p. 114.

(16) BOSCO, Ramíres. Los principios del Derecho del Trabajo. In: Revista Derecho del Trabajo. Argentina, 1983. p. 649. Apud RODRIGUEZ, Américo Plá. Ob. cit. p. 114.

(17) PÉREZ, Benito. El principio in dubio pro operario es inaplicable en materia de prueba. In: Revista Trabajo y Seguridade Social. Buenos Aires, 1973. Tomo I. p. 55 e ss. Apud RUPRECHT, Alfredo J. Ob. cit. p. 17.

(18) TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. A sentença no processo do trabalho. São Paulo: LTr, 1994. p. 100.

(19) BATALHA, Wilson de Souza Campos. Tratado de direito judiciário do trabalho. vol. II. 3.ª ed. São Paulo: LTr, 1995. p. 150.

(20) BEBBER, Júlio César. Princípios do processo do trabalho. São Paulo: LTr, 1997. p. 80.

(21) COUTINHO, Aldacy Rachid. O Princípio da Proteção Revisitado. Revista Bonijuris. n.º 452. Curitiba: AMATRA – Associação dos Magistrados do Trabalho – IX e XII, Associação dos Magistrados do Paraná e Associação dos Magistrados Catarinenses, Jul/01. p. 05-07.

(22) TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. A prova no processo do trabalho. 5.ª ed. São Paulo: LTr, 1991. p. 102.

Luiz Eduardo Gunther e Cristina Maria Navarro Zornig

, juiz e assessora no TRT da 9.ª Região.

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