Teatro Guaíra quebra jejum de 10 anos e exibe “La Bohème”

Nos últimos anos, o cenário da ópera no Brasil ganhou contornos geográficos inusitados, quando os festivais de Manaus e Belém levaram para o Norte do País o foco de produção e revelação de cantores nacionais, deixando São Paulo quase solitária aqui embaixo, em que pesem iniciativas esparsas do Rio e de Belo Horizonte. A grande ausência, porém, vinha sendo a região Sul – e um indício forte é o fato de que há dez anos o importante Teatro Guaíra, em Curitiba, não produzia uma ópera. Pois o jejum foi quebrado na sexta-feira (24), com a estréia de uma nova produção da La Bohème, de Puccini, com récitas ao longo desta semana.

O plano para este ano previa a encenação de quatro títulos. Além da Bohème, Turandot, João e Maria e Dido e Enéas. Não deu certo: faltou dinheiro. Destas óperas, duas seriam "profissionais" – Turandot e João e Maria -, uma ocuparia a sala de câmara do Guaíra – Dido – e a Bohème seria um título "jovem", montado para revelar novos cantores, selecionados em audições aqui e na Itália, que em outubro recebe a mesma montagem. E, por mais que os outros títulos não tenham saído do papel, o clima é otimista. Depois de um longo hiato, era preciso começar de alguma forma. E, aos poucos, trazer a comunidade paranaense de volta ao universo da ópera. O pontapé inicial, portanto, está sendo dado esta semana, arquitetado pelo diretor italiano Roberto Innocente e o maestro Alessandro Sangiorgi.

No meio do caminho

Nos últimos anos, criou-se uma divisão entre as montagens "modernas", que tiram a história de seu tempo original e procuram relações que vão além do universo por ela descrito, e aquelas tradicionais, fiéis ao contexto original, de corte naturalista. Exalta-se sempre uma em detrimento da outra. Mas há também um meio-termo, aquela montagem que mais sugere do que afirma, que se mantém ligada ao original, mas, dentro de seus limites e possibilidades, tenta extravazá-lo. É mais difícil, mas costuma dar melhores resultados.

A montagem de Innocente talvez se encaixe neste terceiro caso. A ópera é ambientada na Paris do século 19, onde entramos em contato com a vida boêmia de um poeta, um pintor, um músico, um filósofo – seus trabalhos, suas dificuldades financeiras, suas desilusões. E seus amores, claro. Puccini costuma ser criticado por não tratar de grandes temas ou questões em suas óperas. Mas é justamente no tratamento sensível que dá a questões simples e cotidianas, como o amor entre dois jovens, que faz dele um grande compositor, digno do espaço que ocupa nas salas de ópera de todo o mundo.

Neste ponto, Innocente acerta em cheio ao ressaltar esse componente em sua montagem. O que ele faz, por exemplo, ao transformar Parpignol, o vendedor do segundo ato, no narrador da história, presente desde o início, acompanhando o primeiro encontro de Rodolfo e Mimi. A sua presença no palco funciona muito bem e o seu tom desiludido já logo de cara nos sugere que há algo de trágico naquela relação que mal se inicia, em contraste com o encanto da música de Puccini, que nos leva em uma direção totalmente oposta. É aqui que entra o poder da sugestão – e, até aí, vai tudo bem. É interessante, também, a projeção de imagens e quadros de Chagall ao longo da encenação.

O problema começa na hora que o diretor decide ser necessário explicar o que já está claro. E erra a mão. É totalmente desnecessária, por exemplo, a presença de um balé, formado por vários casais de bailarinos, para acompanhar a cena do primeiro ato em que Rodolfo e Mimi, tenor e soprano, se conhecem. As velas que se apagam, uma chave que cai no chão, as mãos que se tocam no escuro, um suspiro, e duas das mais belas e célebres árias do repertório operístico. É necessário mesmo de um balé nos dizendo que aqueles dois jovens se apaixonaram à primeira vista? É só ouvir a música: Puccini já nos diz isso antes, com muito mais eficácia.

Mas não se trata apenas disso. Para arranjar espaço para o balé, os cantores, sobre uma plataforma representando o apartamento de Rodolfo, são colocados no fundo do palco. Isso gera problemas técnicos em qualquer teatro, mas em especial no Guaíra, que tem o fosso de orquestra muito próximo à platéia. Em outras palavras, ouve-se a Sinfônica do Paraná muito bem, mas as vozes ficam ao longe. E, se são vozes pouco experimentadas, jovens, ainda não acostumadas a grandes teatros, isso é definitivamente um problema. Que poderia facilmente ter sido evitado.

Ao longo da apresentação, de qualquer forma, o clima vai esquentando e as vozes se soltam. Aí dá para ver que o Rodolfo de Miguel Geraldi é muito musical e tecnicamente bom, capaz de belos momentos, como o dueto com Mimi no último ato; que a soprano Susie Georgiadis, de belo timbre, ganharia com um uso um pouco menos exagerado do vibrato; ou que Sebastiano Cigogneti é um Marcello de voz muito bem colocada, mas pequena, mais afeita ao repertório camerístico. No fim das contas, a Bohème desempenha o seu papel. Dá início a um projeto mais amplo e revela algumas vozes às quais se deve prestar atenção.

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