Retrato do artista quando jovem

Aos cinco anos, Carlinhos, olhos muito vivos, inquietos, demonstrava um temperamento de artista. Sob os olhares ansiosos dos pais, que só tinham olhos para o rebento, este deixava transparecer claríssimas tendências para a pintura. Embora, curiosamente, eles vissem os pendores filiais sob outro ângulo – equivocado.

Mas Carlinhos sentia-se essencialmente artista. Revelando particular interesse pela escola abstrata. Estava mais para Picasso ou Dali, que para Rubens ou Rembrandt.

As coisas passavam-se mais ou menos como passarei a narrar.

Antes de mais nada, vinha a paciente e metódica coleta do material. Como é compreensível, Carlinhos não tinha à sua disposição pincéis e tintas. Muito menos telas. Cadê o dinheiro para comprar tudo isso? Os pais eram pobres. Assim, era necessário conseguir os materiais de graça. A genial improvisação do artista em embrião tinha aí o seu intróito. O pintor mirim, com a mão direita aberta em forma de concha, começava a caçar moscas nos vidros das janelas da casa. Era um caçador emérito. Logo que tinha um infeliz díptero aprisionado entre os dedos, imobilizava o animalzinho. Um leve e quase imperceptível aperto, entre o polegar e o indicador, e pronto: a barriga da coitadinha explodia. Em seguida, retirava-lhe as asas. E colocava o inseto, ainda remexendo as patinhas minúsculas, dentro de uma urna funerária improvisada: uma caixa de fósforos. Quando tinha capturado mais ou menos duas dúzias, serenava. Urgia dar início à segunda fase do seu trabalho. Era preciso, agora, separar o joio do trigo. Ou melhor, as cabeças dos abdômens. E Carlinhos realizava a melindrosa operação com a perícia de um cirurgião de alto coturno. Mesmo sem instalações técnicas convenientes e sem instrumental cirúrgico adequado. Com a unha do polegar direito (sempre com uma tarja lutuosa de sujeira indelével, para tristeza da mãe), num movimento brusco de guilhotina revolucionária, decepava a cabeça de cada uma das moscas. Era como se ele fosse, a um só tempo, o juiz e o carrasco.

O pai costumava observar com incontido orgulho a movimentação estratégica do herdeiro, na sua coreografia e mímica admiráveis. E falava para a mulher, com expressão radiante:

– Rosaura, acho que vamos ter um filho médico… Talvez cirurgião. E dos bons…

Ela sorria também, satisfeita e gratificada. E murmurava simplesmente:

– Quem sabe, Adalberto? Quem sabe…

Lembrava a infância pobre, as dificuldades de vida, os obstáculos do quotidiano sitiando sempre a cidadela dos sonhos que alimentavam as noites, as esperanças guardadas avaramente no mais fundo do peito. Esperanças que talvez se realizassem um dia. A redenção poderia vir através do bom Carlinhos. Com a ajuda de Deus. Que sabe?

Alheio ao mundo circundante, obsecado, perdido no seu universo privativo, o artista prosseguia em suas manobras sutis. Quando todas as cabeça estavam decepadas, tinha um profundo suspiro de alívio. Tudo estava pronto para a fase final do seu labor fecundo. Levantava-se então e ia buscar um folha de papel branco numa gaveta da velha escrivaninha do pai. Abria depois a caixa de fósforos e jogava o seu conteúdo macabro – as cabecinhas ingloriamente guilhotinadas – em cima da folha de papel, que dobrava ao meio. Usando de novo a unha sobre o papel dobrado, esmagava metodicamente todas as cabeças dos dípteros incautos. A obra estava concluída. Abrindo a folha de papel, o jovem artista tinha um estremecimento de êxtase, semelhante talvez ao que invadiu Da Vinci ao contemplar o rosto da bela Gioconda.

De fato, a tela era perfeita: num céu branco, irrepreensivelmente branco, estrelas rubras explodiam, num apocalipse sangrento. Muito grave, ensimesmado, olhos brilhantes, Carlinhos fitava a sua criação, realizado. E pensava vagamente que, se ao invés de cabeças de moscas usasse cabeças humanas, talvez um dia conseguisse realizar a sua obra-prima. Uma daquelas obras-primas que deslumbram o público das bienais e vão depois enriquecer as galerias dos museus famosos…

Carlinhos olhava fixamente a sua obra. E os pais, fitando o rebento, sorriam, numa esperança muda, secreta, doce. Sorriam, como que antegozando uma felicidade futura. Sorriam, como se o sorriso fosse elixir, bálsamo, antídoto para todos os esgares e todas as lágrimas. Sorriam, provisoriamente felizes. Sorriam.

João Manuel Simões

é escritor, membro da Academia Paranaense de Letras.

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