‘Pessoas Perfeitas’ traz gente em forma de marionete

Pessoas Perfeitas traz para a caixa negra da sala de representação gente em forma de marionetes. Estes seres parecem máscaras agressivas do carnaval veneziano ou pessoas descarnadas da pintura de Lucian Freud. São resultado da imaginação e talento plástico de Rodolfo Garcia Vázquez. O encenador transfigura o kitsch em expressão teatral carregada de dor e cinismo ao retratar os transgressores da noite, os alucinados e doentes do espírito.

No cinema, há exemplos célebres desde M – O Vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang, com Peter Lorre (1931) à Repulsa ao Sexo, de Roman Polanski, com Catherine Deneuve (1965) ou a provocação e medo estampados no rosto branco de Joel Grey em Cabaret, de Bob Fosse (1972). A lista é extensa. Esta sub-humanidade reúne negociantes do sexo, artistas frustrados, foras da lei, mulheres no limite do desespero. Uma legião sem família, dinheiro ou futuro. Desajustados longe dos seus parentes e engolidos pelas metrópoles. O Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Civil de São Paulo registra que esses desaparecimentos nos desvãos do asfalto ocorrem por uma série de fatores, entre eles a quebra de vínculo familiar, crimes ou drogas.

Nada de novo

A música Conceição, sucesso de Cauby Peixoto, foi composta por Jair Amorim em 1956, há quase 60 anos, portanto. Narra a vida da moça achando que “descendo a cidade iria subir/ Se subiu ninguém sabe, ninguém viu/Pois hoje o seu nome mudou /E estranhos caminhos pisou”. O grupo Os Satyros tem interesse por estes náufragos. Em dado momento, porém, os espetáculos privilegiaram a contramão sexual dos travestis, transexuais, como se a heterossexualidade não estivesse em questão.

O risco do gueto temático ainda está latente no repertório, mas desta vez Rodolfo Garcia Vázquez abre o leque de sonhos, vícios, visões e desastres existenciais no texto em parceria com Ivam Cabral, um dos fundadores e ator chave dos Satyros. Pessoas Perfeitas é um título com evidente sentido duplo: nome de uma seita “oriental-evangélica” e referências ora trágicas ora risíveis a seres nada perfeitos.

No caos urbano surgem a mocinha interiorana e mística que se envolve com um garoto de programa endurecido nas periferias; o casal sem diálogo, ele amorfo, ela em permanente histeria; o solteirão que cuida da mãe com Alzheimer e sublima a homossexualidade em linhas de disque amizade; a cantora de bar que não aconteceu e está gravemente doente; o escritor sem obra no protesto vazio dos alcoólatras.

Pode parecer excessivo, mas o texto de Ivam Cabral e Rodolfo Garcia Vázquez é baseado na observação de moradores do centro paulistano e em entrevistas realizadas. É o breve instante “extra-pós ou pansexual” (vamos inventar um nome) de Os Satyros. Mesmo assim, o enredo abre pouco espaço ao aposentado solitário, o desempregado idoso, à viúva esquecida. Os pobres diabos sem graça são realmente difíceis de dramatizar e deles Chico Buarque se ocupou no verso “A dor da gente não sai no jornal”.

A força do espetáculo está em apresentar uma humanidade concreta e, no entanto, fora do realismo artístico-documental. Tudo é verdade mas em termos de fantasmagoria, gestos de marionetes e maquiagem do imaginário japonês ou hindu.

Os perturbados às vezes ostentam mesmo aparência coerente com seu estado mental (Robert de Niro tatuado e com o cabelo moicano em Taxi Driver). Flutuam em um clima onírico ou de pesadelo de cores gritantes que Vázquez sabe construir com maestria e o elenco adere em interpretações de entrega total ao escuro da existência.

Neste ambiente de vivos com aspectos irreais (o que lembra o teatro do polonês Tadeusz Kantor em A Classe Morta e parte do cinema de Bergman) há solos brilhantes de Ivam Cabral, da carismática cantora e atriz Adriana Capparelli e de Eduardo Chagas (o homem apagado) e Henrique Mello (o gigolô sem afetos).

A pouca nitidez de outros personagens, os exageros verbais ou os agudos de vozes dificultam o pleno efeito das atuações de Marta Baião (a mãe caricata), Julia (a espiritualista desorientada) e Fabio Penna (o poeta “maldito”), mas são presenças que se destacam em algumas sequências. Ao fim deste turbilhão de imagens e dores – falta enxugar e amarrar o final que se prolonga e confunde o público – o resultado é desde agora um dos melhores espetáculos do ano.

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