Para entender poesia é preciso ler poesia

Conta-se que certa vez uma professora do interior perguntou a Mario Quintana:

 O que devo ler para entender Shakespeare?

E o poeta lhe respondeu sem vacilar:

 Shakespeare, minha filha.    

A despeito deste sábio conselho, creio que vale a pena socorrer a professorinha, por isso, dedico-lhe algumas considerações sobre os poetas e o seu labor com as palavras.

Ao contrário do que se acredita, as coisas do mundo não são tão compreensíveis como gostaríamos que fossem. Grande parte dos acontecimentos que nos rodeiam pertence a um âmbito jamais explorado por palavras, isto é, de certa forma são fenômenos indizíveis. O poeta é aquele que, auxiliado por uma aguçada sensibilidade, consegue penetrar no mistério das coisas e descrevê-las a partir de uma perspectiva inusitada. É quem nos convida a olhar uma e outra vez para acontecimentos aos quais já não damos importância, quem nos incita a observar com atenção tudo aquilo que com o tempo fomos relegando à lista das coisas inquestionáveis e conhecidas. Ele sabe quebrar o silêncio das leis naturais a que estamos sujeitos para criar uma espécie de milagre estético, chamado poema, que tem o poder de resgatar o nosso saber intuitivo. Porque a poesia verdadeira é aquela que nos atinge no alvo, que nos captura, que nos comove e nos ilumina por inteiro, que nos faz compreender com os sentidos aquilo que não compreendemos com a razão.

De todos os artistas da palavra, o poeta é aquele que lê o mundo com maior liberdade. Por exercer sua liberdade de forma tão completa é que ele realiza grandes proezas, como, por exemplo: inventar o que não existe, animar os objetos, gerar mitos, conceber imagens, questionar o indiscutível, comunicar o incomunicável, enfim, aumentar um pouco mais o universo.

Como a maioria dos criadores, o poeta é um indivíduo inquieto, um ser perplexo diante da natureza humana, um grande perguntador sem respostas, um pessimista por vocação, mas sobretudo uma criatura solidária. Ele precisa exercer sua liberdade através dos outros, compartilhando suas vastas descobertas (ou seus insignificantes nadas), apontando rumos (ou embaralhando caminhos), confortando a angústia dos homens com beleza e generosidade. Ao fecundar a linguagem para dar vida à poesia, o poeta cria um objeto único que só adquire sentido se for contemplado pelo próximo, pois a sua arte consiste em estabelecer uma relação de afeto e de cumplicidade entre o seu mundo e o mundo de quem o lê.

Quando um poeta explora todas as possibilidades das palavras, ele as liberta. E ao desprendê-las de seus limites lingüísticos (de sua coerção lógica, semântica ou sintática), também as exime de qualquer censura, revigorando-as do seu desgaste natural e principalmente acentuando o seu caráter de imprevisibilidade. Por isso, as palavras de um poema quase sempre têm uma felicidade própria, uma alegria interna, uma energia que faz com que elas saltem da página, e se beijem e se encantem, que rimem entre si e dancem por entre os versos, até caírem exaustas no vazio e voltarem a emudecer. Porque poesia também é feita de silêncios. É preciso contemplar o silêncio que ronda um poema, se quisermos apreciar a sua música e ouvir a sua respiração.

Para além das palavras, encontraremos uma rede quase infinita de imagens, idéias e pensamentos que o poeta entrelaça e deposita em nossas mãos. Às vezes, intencionalmente, como quem nos estende ?uma arma carregada de futuro? (conforme diria Gabriel Celaya), outras vezes, de forma mais ingênua, apenas como alguém que nos convida a brincar.

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