Palavrão perdeu a parada e não assusta mais

Eram duas deusas diáfanas deslizando suaves e milagrosas em seus saltos altos sobre irregulares calçadas de Curitiba, nesta primavera úmida. Exalavam suave perfume adocicado de uma fragrância da Natura extraída de planta exótica da Amazônia.

Uma delas exclama com voz doce: “Eu disse porra: você vai se foder, caralho!”. Sinal vermelho as detém na esquina. Ao redor, nada. Ninguém se espanta com três palavrões sucessivos sapecados de supetão por uma divina numa frase curta.

A vida prossegue normal como os carros velozes à frente, aproveitando o sinal verde para eles. Se fosse cinquenta anos antes, qualquer marmanjo num raio de cem metros estaria agressivamente excitado. Diria, perigosamente.

Agora, nada. Nem um olhar safado do sujeito do outro lado, mais entretido em falar sozinho ao celular. Nem um olhar de censura. Sinal verde. Para nós. E os palavrões. O palavrão enquanto bicho papão do diálogo perdeu a parada.

Hoje uma velha desbocada entoa qualquer palavrão com naturalidade e até soube de um pastor que no calor da pregação disse alto na igreja, dando toque coloquial na pregação: “Porra, Jesus vem aí, gente!”.

Se eu fosse Jesus, não viria, de pirraça. Por falta de respeito. Mas não sou Jesus, embora às vezes me crucifiquem por bobagens. A verdade é que palavrão não assusta ninguém, irrita e causa briga no trânsito e no campo de futebol. Um sujeito prudente ouve palavrão, vira as costas e vai em frente.

Ninguém cora. Estamos imunizados contra palavra suja. Palavrão virou pobre coitado, ajudante numa interjeição, adjetivo mais enfático. Resumindo: avacalhou. Qualquer moça bonita fala numa esquina da cidade.

Claro que esta reflexão durante passagem rápida pelo centro não caiu do céu por acaso. Também estou imunizado ao palavrão. Ocorre que fiz volta ao passado ao ler Não tenho Culpa que a Vida Seja o Que ela É (Editora Agir, 264 págs, R$ 44,90), de Nelson Rodrigues.

Ao fechar o livro, fiquei em dúvida: “O que seria de Nelson hoje em dia, se os palavrões não excitam e não coram ninguém, as paixões não incendeiam, os suicídios não impressionam, os crimes banalizaram e os incestos viraram rotina policial?”. Até no colégio a sacanagem corre solta.

Nelson desceria do pedestal de grande tarado da literatura brasileira – o outro, também Nelson, é personagem de Dalton Trevisan. Nelson não seria ninguém. E isto seria uma tragédia nacional.

Uma tragédia literária, claro. Mas outra ideia imediata me salvou: como Nelson era gênio ele certamente teria onde se apegar. Talvez hoje haveria ainda mais material para ele mostrar a vida como ela é, porque ninguém é como realmente aparenta. Alivio imediato.

Mas o livro é didático porque mostra como o pudor servia de combustível para produzir uma literatura recheada de paixões que se deslizam nos detalhes, dos quais o palavrão era um dos mais emblemáticos.

Quarenta narrativas curtas escolhidas entre centenas que Nelson publicou entre 1951 e 1961 no jornal Última Hora, na coluna A vida como ela é, ideia de Samuel Wainer.

Ideia que Nelson aceitou com pretexto de dar toque de ficção à vida real, a crimes banais do subúrbio carioca, a intermináveis casos de adultério, a amantes safados, a inevitáveis cornos mansos, a ninfeta que seduz primo, tio, cunhado e até o vizinho e ainda faz cara de santa, quase sempre levando um destes à ruína ou à morte, a viúva que só esquece o finado depois que levar um sonoro cacete do novo marido e poder enfim exclamar: “Agora sim, me sinto amada”. Era outro mundo.

Com tudo isto Nelson ampliou o seu universo então circunscrito a dramaturgia e alguns romances assinados com pseudônimos para produzir nas páginas dos jornais uma literatura pujante, densa e com carga dramática somente vista em peças de Shakespeare e nos contos de Alan Poe.

E, definitivamente, entalhou o seu nome no panteão dos gênios literários brasileiros em que Machado de Assis reinava solitário. O palavrão é um caso típico no universo sufocado de pudicia.

Todos sabiam que existia, alguns pronunciavam, mas quem deveria dizer e que hora era a de pronunciar um palavrão? A coisa pegava fogo. Um homem decente era aquele que conhecia, mas não dizia palavrão. E cafajeste era aquele que não fechava conversa sem dizer pelo menos um.

Palavrão só saia da boca de mulher vulgar. Que mulher direita, virtuosa, não falava e nem pensava – pelo menos em público. Mas, assim como homem decente, ela devia ter conhecimento da coisa. Afinal, podia precisar dela.

É contraditório? É. Por mais paradoxal, Nelson era contra a mulher “cega, surda e muda diante dos fatos da vida”. E ao encharcar suas histórias com “maus exemplos”, mulher que soltava palavrão, casos de incestos, traições, para mostrar a vida como ela realmente é ou era, ele foi rotulado de tarado. Tarado por derrubar o biombo entre o real e o aparente.

Tarado por admitir que os desejos e as paixões não se prendem em caixas de sapato. Para Nelson, as mulheres deviam chegar à fronteira da traição – e não trair; conhecer os palavrões e pronunciá-los na alcova para deleite do marido, nunca em público.

O terrível palavrão podia se transformar em tônico para a vida conjugal. Em público a mulher teria de ser dama, na cama, Messalina. Naturalmente a ambiguidade sugere outra hipocrisia, mas Nelson se defendia dizendo que a virtude era “a opção consciente e voluntária pelo bem”.

Como alguém poderia optar pelo bem sem conhecer o mal? Faz sentido. As moças deveriam ser virtuosas, mas ter conhecimentoteórico minucioso do bem e do mal.

Caso contrário, não seriam virtuosas; seriam reprimidas. E quando a repressão explodia, explodiam as tragédias. Exemplo no conto O broto de 16 anos, assinado por Susana Flag, pseudônimo de Nelson.

A garota faz o que bem entende. A mãe chama o irmão virtuoso para passar sermão na menina. A garota ouve e no fim da preleção indaga: “Titio o senhor nunca traiu a sua mulher?”.

Ao perceber a perplexidade do homem, ela investe, para levá-lo a trair a mulher e demonstrar que não é o que aparenta. O tio excitado com a garota, em vez de ceder ao desejo, pula do 15 º andar.

A lição de Nelson é que o mundo não perdoa os ingênuos, o sujeito era falso virtuoso, pois não conhecia as alamedas do desejo. Caso conhecesse escaparia da ninfeta. Mas também não era hipócrita, caso fosse, teria deitado com ela e mantido segredo.

O que é virtude e o que não é flutua no universo rodrigueano, às vezes trocando de lado. Heliodoro, noivo de Odaléia, descobre que a moça tem defeito: era perfeita.

A moça não falava nem gíria, quanto mais palavrão. A perfeição dela o excita. Tudo o que deseja é que ela sussurre um palavrão cabeludo. Três dias antes do casamento, um ônibus atropela Heliodoro. Que para morrer, implora: “Um palavrão, um palavrão”.

Um tio do rapaz se oferece, mas o moribundo é exigente: “Quero Odaléia”. Atônita a moça decide atender. Mas surge um problema: qual palavrão? Ela consulta a mãe que sussurra uma sugestão.

Odaléia se debruça sobre Heliodoro e no ouvido dele diz o nome feio baixinho, só para ele. O agonizante pede: “Fala alto, fala alto”. Ela, com leve rubor, fala alto e ao ouvir, o rosto de Heliodoro toma expressão de felicidade sobre-humana. E assim ele morre.

Em outro conto Idalina prova que é o maior amor na vida do marido porque é a única capaz de beijar a boca sem dentes do sujeito, coisa que a amante não foi capaz. É coisa de louco. Mas Nelson sabia que a humanidade é maluca até a medula. Com ou sem palavrão.

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