Otto da maior gravidade

O pernambucano Otto tinha tudo para estar de bem com a vida: está casado com uma das mais belas e talentosas mulheres do Brasil, a atriz Alessandra Negrini; pôde se dar ao luxo de inspirar-se musicalmente em viagens com a mulher pela Amazônia, Chapada Diamantina e pelo Vale da Morte, na Califórnia; o que, para completar, acabou rendendo um belo disco – Sem Gravidade, recém-lançado pela Trama -, o terceiro da sua carreira, que encerra a trilogia iniciada com Samba pra Burro e Condom Black.

Ao contrário do que sugere o título do seu novo trabalho, porém, Otto parece angustiado, inconformado com o que considera “falta de visibilidade” e/ou reconhecimento da parte da imprensa e do grande público. Em entrevista ao Paraná-Online, extravasou sua indignação com o fato de a crítica (positiva, diga-se) do seu disco ter sido publicada numa página interna de um grande jornal de circulação nacional, “atrás daquele rockzinho americano dos Strokes e de uma escola de DJs na África do Sul (!)”. “Caguei pros Strokes, não tem nada de novo.”

E a tal escola de DJs? “É mais uma faculdade de gafanhotos para comer toda a música brasileira. Já tem milhões desses gafanhotos no mundo, agora eles estão sendo criados em laboratório”, fulmina o “sócio-fundador” do manguebit, lembrando que foi um dos primeiros no Brasil a deixar uma banda e aventurar-se com samplers, raves e música eletrônica. “Se eles continuarem sampleando Tom Jobim e João Gilberto, uma hora vai secar. Quem faz música nova e original está sendo asfixiado. Estou tentando servir a uma música que, se continuar assim, vai acabar logo, logo. E ninguém percebe que essa modernidade que a gente está enfiado é colonial e provinciana.”

Ato contínuo, e Otto volta suas baterias contra a mídia: “A mídia não me comporta. Sempre me olharam meio de lado, ou fingem que não vêem. Eu sei cantar, sei dançar, compor, não sei por que minha música toca menos. O público compreende, mas o formador de opinião quer te colocar no molde, insiste em te grudar um rótulo na testa”.

Guardião

Feito o desabafo, Otto conclui ser uma espécie de “último guardião” da música honesta e original, vinda “da alma”: “Estou tão só nessa idéia. Gosto da Nação [Zumbi], o Fred Zero Quatro consegue pegar o roots, do Mundo Livre, e coisas mais antigas, como Nelson Cavaquinho, Jackson do Pandeiro, Miles Davis”. E os cariocas do Los Hermanos, tidos como grande referência da nova música “de qualidade”? “É bom, mas é aquele rockzinho.” O incendiário Cordel do Fogo Encantado? “Os meninos são legais, e o melhor é que é difícil de samplear. Mas eles abrem espaço para shows, não para vender discos”, ressalva. “Tudo isso precisa de mais espaço, pessoas que gostem do show, apreciem novas melodias e comprem os discos.”

Caetano

Otto faz lembrar o inflamado discurso de Caetano Veloso no Festival da Canção de 1968, depois de ser vaiado com a música É Proibido Proibir (“É esta a juventude que diz que quer tomar o poder? (…) Vocês não estão entendendo nada, nada, absolutamente nada! (…) Foi Gilberto Gil, e fui eu, quem abalou as estruturas…” No meio do furacão, o pernambucano consegue render-se a uma ligeira auto-crítica: “Antes eu só pulava, quase não pensava. Agora eu pulo, danço, canto, penso…”. E o problema parece ser precisamente este: Otto está começando a pensar demais.

Teclados criam ambiente sem gravidade

E o pior é que Otto está reclamando de barriga cheia. Contando com as habilidades do bruxo dos teclados Apollo 9, o toque de modernidade do DJ Primo e as participações especiais de Rita e Beto Lee, Alessandra Negrini e do enteado, Antonio Negrini Benício, ele fez um grande disco. Denso, climático, melodioso. Psicodélico, mas sem o ranço das viagens de ácido dos anos 70. A seguir, Sem Gravidade faixa por faixa:

Lavanda: a frase “Vamos voltar à pilantragem”, proferida pelo filho de Alessandra Negrini, é a deixa para uma bela música, com a batucada valorizando o mellotron mourisco de Apollo 9. Letra curtíssima e desconexa, com grande sacada melódica. Alessandra Negrini entra em cena pela primeira vez, num backing irretocável.

Tento Entender: resgata a Rita Lee dos Mutantes, numa faixa psicodélica, algo sombria. Solo vertiginoso de Beto Lee, com final etéreo.

Pra Quem Tá Quente: Eletro-jazz cool, com as repetições na letra típicas de Otto. Clima Blade Runner e belo solo de scratches do DJ Primo, sobre os teclados climáticos do Apollo 9.

Nebulosas: samba-coco melodioso, com letra romântico-aventureira. Mais teclados, agora com guitarra e percussão latina.

Pra Ser Só Minha Mulher: Momento retrô, releitura tecnológica da balada jovem guarda composta por Ronnie Von e gravada por Roberto Carlos. Soa algo desafinada, embora o cantor negue com veemência.

Dedo de Deus: Baladinha bossa nova, com violão e percussão, que de repente cai para uma marchinha nordestina de carnaval. Mais climas de teclados e a voz de Alessandra Negrini.

Amargosa: Declamação de Alessandra Negrini, letra econômica. Teclados nebulosos e melodia tranqüila.

Indaguei à Mente: Outra música etérea, onírica. Psicodelia, repetições e scratches.

Amarelo Manga: Integrante da trilha do filme homônimo, é um eletro hip-hop com a boa participação de BNegão (que cantava com Marcelo D2 no Planet Hemp). Melodia atormentada. com muito suingue e tecladeira.

História de Fogo: reggae sensual cantado por Alessandra Negrini, com belos vocalizes. No final, vira uma ciranda nordestina.

Imaginar a Vida: Música lisérgica com letra árida, com mellotron soando como realejo. A melodia, quase um cântico nordestino serpenteia pelo clima oriental. Final de arrepiar, com a voz quase infantil de Débora Reis. Talvez a melhor música do disco.

Avisa Gil: loas ao ministro, com homenagem embutida a Wali Salomão. Outra declamação de Alessandra Negrini, com guitarra de Max de Castro.

Quem Sabe Deus: reggae com crítica religiosa e cores nordestinas, com vocais caribenhos.

Sem Gravidade: Pelo nome, poderia ser a mais “viagem”. Não é: baixo vertiginoso com toques jazzísticos, teclados e frases quebradas de guitarra e bateria. Final eletrônico.

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