Olavo Bilac, Guerra Junqueiro & o poema A fome no Ceará

Graças à extrema amabilidade de um amigo cearense, de Fortaleza, Tupinambá Nogueira Ferreira ( curiosamente, sobrenomes de solteira de minha mãe), tive oportunidade de ler há dias um famoso poema de Guerra Junqueiro de que há muito ouvia falar, sem conhecê-lo: A fome no Ceará. Por sinal, numa edição lisboeta de 1906, prefaciada com brilho pelo nosso Olavo Bilac.

Diga-se antes de mais que Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac e Abílio Manuel Guerra Junqueiro eram amigos fraternos. Correspondiam-se. Conheciam reciprocamente e admiravam as respectivas obras poéticas. E o amor que Bilac tinha pela mãe-pátria só tinha equivalente no amor que Junqueiro nutria pelo Brasil. Lembro que durante a visita que, a convite, Olavo Bilac fez a Lisboa, na primeira década do século vinte, durante a solenidade na Câmara Municipal, saudando o visitante de além-mar, o orador oficial, que era justamente Guerra Junqueiro, concluiu o seu discurso com estas palavras: ?Beijando, irmão Bilac, a sua fronte, eu beijo o Brasil no coração!? Uma frase comovida, emblemática, tocante.

Mas tudo isso são meros detalhes históricos, sentimentais. O que vale mesmo é a poesia dos dois vates: a do autor de Poesias e Tarde, o mestre da Escola Parnasiana brasileira, artífice de alguns dos sonetos mais perfeitos da Língua Portuguesa, depois de Camões e Bocage; e a do criador de Os simples, A velhice do padre eterno, Pátria e Finis patriae, entre outros livros marcantes. Aliás, por falar em pátria, lembro que Fernando Pessoa chegou a considerar esse poema dramático ? longo, denso e profundo ? superior a Os Lusíadas, do Épico imortal. Evidentemente, o gênio criador dos heterônimos exagerava ao fazer tal colocação. Est modus in rebus…

Mas vamos ao objetivo precípuo da presente crônica, que é o de revelar ao leitor interessado, como eu próprio fui durante muitos anos, a textualidade cantante de A fome no Ceará. Trata-se de um poema relativamente extenso, com quinze estrofes de cinco e seis versos. Permito-me reproduzir, aqui e agora, apenas a 1.ª, 2.ª, 3.ª, 4.ª, 6.ª, 14.ª e 15.ª. Penso que elas são mais do que suficientes para dar uma idéia da força poética da referida estrutura poemática. Aí vão elas:

 Lançai o olhar em torno:

 arde a terra abrasada

 debaixo da candente abóbada de um forno.

 Já não chora sobre ela orvalho a madrugada.

 Secaram-se de todo as lágrimas das fontes.

 E na fulva aridez aspérrima dos montes,

 entre as cintilações narcóticas da luz,

 as árvores antigas

 levantam para o ar, atléticas mendigas,

 fantasmas espectrais, os grandes braços nus.

 Na deserta amplidão dos campos luminosos,

 mugem sinistramente os randes bois sequiosos.

 As aves caiem já, sem se suster nas asas.

 E exaurindo-se a força enorme que ela encerra,

 o sol aplica à terra

 um cáustico de brasas.

 O incêndio destruidor a galopar com fúria,

 como um Átila, arrasta a túnica purpúrea

 nos bosques seculares.

 E, Lacontes senis, os troncos viridentes

 torcem-se, crepitando entre rubras serpentes

 com as caudas de fogo em convulsões nos ares.

 (…)

 E entre todo este horror existe um povo exangue,

 filho do nosso sangue,

 um povo nosso irmão,

 que nas ânsias da fome, em contorções hediondas,

 nos estende através das súplicas das ondas,

 com o último grito a descarnada mão.

 (…)

 Vamos! Abri os corações, abri-os!

 Transborde a caridade como os rios

 transbordaram dos leitos em janeiro.

 Não pode haver ao certo mão avara

 que o pão recuse a quem lhe deu a seara,

 que a esmola negue a quem a deu primeiro.

 A miséria é um horrível sorvedouro.

 Vamos! Enchei-o com punhados de ouro,

 mostrando assim aos olhos das nações

 que é impossível hoje (isso consola)

 morrer de fome alguém pedindo esmola

 na mesma língua em que a pediu Camões!

O último verso do belo poema talvez não corresponda à verdade histórica. Isso que importa? O que vale é a verdade poética. O que importa é a qualidade e a beleza da língua que a exprime. Língua que é hoje a terceira do Ocidente.

Honremo-nos dela, brasileiros, portugueses e países lusófonos da África, da Ásia e da Oceania! Ela merece o nosso respeito, a nossa devoção. Mais: o nosso amor. A nossa pátria é também a nossa língua, como escreveu Pessoa ? e Camus repetiu (em francês, naturalmente).

João Manuel Simões é membro da APL, do CLP, do IHGP, do CEB, da UBE, etc. É autor de cerca de 50 livros (de poesia, crítica, ensaio, crônica, pensamentos e contos).

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