O “Universo Particular” de Marisa Monte

Há uma revolução silenciosa em curso nos palcos da música contemporânea brasileira, em que a arte vem vencendo o entretenimento fisiológico. E outro arrojado projeto desta tendência será revelada ao público hoje, na estréia de "Universo Particular", de Marisa Monte, no Teatro Guaíra, em Curitiba, onde ela se apresenta ainda hoje. Como nos shows recentes de Zélia Duncan ("Pré-pós-Tudo-Bossa Band"), Marina Lima ("Primórdios") e Ney Matogrosso ("Canto em Qualquer Canto"), Marisa não serve apenas o que o público quer deglutir. Sutilmente, testa o paladar dos viciados em hits a abrir os labirintos para senti-la em todas as pausas e silêncios, sutilezas e lirismo. Bravamente, traz o novo como prato principal e deixa um ou outro sucesso para ajudar na digestão. É a anti-Lulu Santos, a anti-Jorge Benjor, que há 30 séculos ruminam o mesmo show com as mesmas músicas.

O essencial do repertório de 24 canções, distribuídas por quase duas horas, vem dos álbuns recentes "Infinito Particular" (seis) e "Universo ao Meu Redor" (cinco), que já venderam juntos 600 mil exemplares em pouco mais de um mês. Marisa ainda canta outras cinco de "Tribalistas" (2002), quatro de "Verde Anil Amarelo Cor-de-Rosa e Carvão" (1994) e uma de "Memórias, Crônicas e Declarações de Amor" (2000) e de "Mais" (1991). Há ainda "Mais uma Vez", que apareceu só no DVD "Barulhinho Bom – Uma Viagem Musical" (1996) e a inédita "Não É Proibido" (Dadi/Seu Jorge/Marisa).

Quem espera vê-la como na turnê anterior, vai se surpreender. Chamar "Universo Particular" de show, como se convencionou no mundo pop, é um tanto reducionista. Musicalmente tem a sofisticação de um recital camerístico, combinando quinteto de cordas com oboé, trompete, violão, cavaquinho, baixo percussão, bateria, guitarra, teclado e programações eletrônicas. Visualmente é digno de cinema, mas sem a histeria de cortes de videoclipe ou excesso de informação. Está mais para filme noir. De preto total, como os nove excelentes músicos da banda – Dadi, Mauro Diniz, Marcelo Costa, Pedro Baby, Carlos Trilha, Maico Lopes, Pedro Mibielli, Marcus Ribeiro, Juliano Barbosa -, Marisa comete a façanha de abrir o show na penumbra, cantando "Infinito Particular".

Aos poucos o fundo do palco é iluminado expondo seus cabos e imperfeições. Sobre uma plataforma elevada, a cantora passa grande parte do concerto sentada, tocando instrumentos como ukulelê, cavaquinho, violão e caixinha de música. A inclusão de kalimba e gaita contribui para fazer de "Eu não Sou da Sua Rua" uma das mais redondas e lindas do concerto. Volta e meia ecoa na memória a letra de "Slideshow at Free University", do Le Tigre, que Marina Lima verteu para seu conceito: "É nossa função como artistas, fazer o espectador ver o mundo da nossa maneira, não da dele." Não apenas neste aspecto "Universo Particular" tem a força artística que "Primórdios" teve no ano passado. Da mesma maneira, Marisa utiliza recursos multimídia (como projeções de vídeos conceituais e minimalistas em painéis de pixels), que arrebatam os sentidos não como acessório para camuflar a falta de consistência musical.

O deslumbrante projeto de iluminação criado por Ralph Strelow banha e complementa as canções de energia solar, especialmente nos pontos em que Marisa soa um tanto reptiliana. E isto sem recorrer a nenhuma cor quente. Mas a música é a estrela. A arquitetura da luz é o próprio cenário, formado por gruas e blocos luminosos que se movem do teto, do fundo e das laterais do palco sobre trilhos, em perspectivas e simplificação quase mondrianianas.

Em "Pernambucobucolismo", duas gruas flutuam sobre a cantora e a banda como naves espaciais, em perfeita sintonia com o etéreo da canção; em "Carnalismo" apenas uma delas simula um ambiente de noite de solidão, evocando uma roda de seresta. Em seqüência matadora de beleza, "Alta Noite" ganha uma lua na forma de balão luminoso, que transita lentamente não no teto, mas próximo do chão ao fundo do palco. São três dos momentos musicais e visuais mais tocantes do concerto, que transcorre sem grandes arroubos; ao contrário, a intenção é ser despojado.

A cantora eleva seu comportamento low profile às últimas conseqüências. Nunca se viu Marisa como agora, em que, contrastando com o veraneio adolescente dos Tribalistas, penetra fundo no outono confortável da maturidade. Sem obviamente abandonar o conceito de tribalismo. Até porque a maior parte do roteiro é composta de canções de sua bem-sucedida e adulta parceria com Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes. Agregados antigos e recentes como Nando Reis, Dadi, Cezar Mendes, Adriana Calcanhotto, Seu Jorge, Davi Moraes, Pedro Baby orbitam entre eles, fornecendo as mais belas canções já gravadas por Marisa. Bem que ela podia trocar "Até Parece" e "Pra Ser Sincero por Três Letrinhas" e "O Bonde do Dom", mas como "durante o curso da turnê, as músicas flutuam num trânsito constante", elas devem entrar.

No final, a inédita "Não É Proibido" surge como a grande surpresa do roteiro. Não apenas pela novidade, mas porque é ótima e dá um gás de alegria dançante, com sabor soul à moda de Tim Maia, a um recital linearmente intimista e melancólico, de padrão quase imutável, e tem cara de hit instantâneo. "Todo mundo tá convidado/ É só chegar/ Traz toda gente/ Tá liberado/ É para dançar", canta ela, para encerrar com "Velha Infância" e dar um bis com "Não Vá Embora" e "Já Sei Namorar". O público sai feliz com estas iscas, mas espera-se que lá dentro o vírus de "Pernambucobucolismo" provoque reações substanciais nas moléculas da emoção. Não por acaso ela fala de "movimento" e "revolução" na letra que requer atenção silenciosa. É sintomático que "Universo Particular" tenha estreado num teatro em que o único inconveniente é o distanciamento provocado pelo fosso da orquestra.

Voltar ao topo