O forasteiro irresistível

Dava a impressão de ter vindo de muito longe. Seu terno era de uma cor indefinível, entre o azul e o lilás. O rosto tinha um não sei quê de estátua grega, misto de cariátide e Apolo. Os cabelos eram vagamente ondulados: tinham ondulações de mar mediterrâneo. Havia algo de estranho na sua arquitetura exterior. Mas era quando abria a boca para falar que acontecia o mais estranho. Sua voz possuía inflexões misteriosamente musicais, com timbre de flauta doce e oboé amargo. Havia sempre um grupo à sua volta. Um grupo que ficava horas e horas encantado, magnetizado pela melodia daquela voz rara desse forasteiro que ninguém sabia de onde vinha, ou por que se encontrava ali. E a linfa sonora que fluía dos seus lábios tinha um som puro de arroio cintilante cantando sobre seixos arredondados, matando a sede de infinitas várzeas de esmeralda e espanto. Inundava a pequena praça da velha cidade, com seus jardins de platibandas breves e a flores costumeiras: rosas, cravos, alguns lírios esquecidos à sombra de um plátano triste. E o forasteiro falava, falava longamente, contava histórias intermináveis, sem mostrar jamais o menor sinal de cansaço ou tédio. Como se falar, arremessar palavra ao vento, fosse para ele um exercício vital de poeta em transe. Ninguém tinha noção exata do que ele efetivamente dizia ou do significado perfeito das suas frases. Apenas quando ele proferia uma certa palavra – e essa palavra era azul – acontecia algo que, hoje, me parece digno de nota, mas que então passava inteiramente desapercebido dos cincunstantes em êxtase: os seus olhos castanhos, quase negros, ganhavam tons azuis, muito azuis, de um azul claro como o céu de primavera, azulejado com pássaros pintados, semoventes. Mas ninguém parecia perceber isso, naquele tempo. Todos estavam irremediavelmente presos na teia que a sua voz ia tecendo, infatigável.

O homem que tinha vindo de muito longe, talvez do fim do mundo, sentava-se às vezes num degrau de pedra do velho chafariz: um pentágono de granito no meio da praça. E a voz do estranho parecia fazer contraponto ao cântico das gárgulas de ferro, dizendo sempre, como a fonte de Rilke, a mesma água transparente e pura. E havia momento em que as duas linguagens, uma descendo das gárgulas, a outra escorrendo dos lábios, pareciam uma só língua que não dizia nada e no entanto parecia cantar o universo inteiro.

De onde vinha o rapsodo fascinante?

Ninguém se preocupava em saber. Por mim, sei apenas que ele habitou algumas tardes e crepúsculos da minha infância. Quando ele ria, então, o seu riso era uma cascata de sons de piano ou órgão. E todos, enquanto falava ou ria, se contentavam em beber com deleite a música da sua voz misturando-se ao canto líquido do chafariz ancestral.

Um dia, inexplicavelmente, o forasteiro desapareceu. O mistério da sua chegada somou-se ao do seu eclipse. Como veio, foi-se embora. E nunca o silêncio pareceu tão pesado e tão triste na pequenina praça do antigo burgo medieval, órfão para sempre de uma voz de mel que fazia sonhar. Na noite seguinte à sua partida alguém garantiu que na face da Lua aparecera desenhada uma pequena mancha esbatida, de forma vagamente humana, com um halo azulado na fronte provável.

Nunca, nunca se soube o que dissera o forasteiro incógnito: que histórias contara, que pensamentos havia expresso, que assuntos abordara? Apenas uma palavra ficou na memória de todos. E essa palavra era – azul.

Ao evocá-lo, hoje, todos se lembram bem de que os seus olhos ganhavam tons azuis, muito azuis, quando seus lábios de cereja a pronunciavam. Recordo ainda que, três dias depois da sua partida, as bocas de ferro do velho chafariz deixaram de jorrar a sua água refrescante. E houve quem dissesse que, momentos antes, a água de prata, que enchia cântaros ovais grávidos de beleza indizível, coroando as cabeças de jovens em flor, ganhou de repente tons azuis, muito azuis, e o seu murmúrio tornou-se incomparavelmente mais doce e musical. Como se fosse o canto exausto de um cisne moribundo, elevando- se na infinita solidão da tarde para sempre deserta. E azul. Definitivamente azul.

João Manuel Simões

é escritor, membro da Academia Paranaense de Letras.

Voltar ao topo