O centenário do poeta W.H. Auden

Foto: Arquivo

A poesia de Auden sempre volta à tona, até mesmo nas tragédias como a das torres gêmeas.

O poeta inglês W.H. Auden (1907-73), cujo centenário se comemora hoje, nunca teve o mesmo status crítico que outros poetas modernos de língua inglesa, como o irlandês W.B. Yeats e os americanos T.S. Eliot, Ezra Pound, Wallace Stevens e outros. Mas, de uma maneira que não ocorre com eles, está sempre de volta à moda, ao noticiário, ao hábito de milhares de leitores em diversos países.

Foi assim, por exemplo, depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova York, quando um de seus poemas mais famosos – ?1.º de setembro de 1939? – começou a ser citado e relido na cidade como se fosse um ponto de convergência, um sinalizador para situar melhor a sensação de desespero. Escrito para lamentar a eclosão da Segunda Guerra Mundial, tem várias passagens que parecem dizer respeito a questões daquele momento. ?O inefável odor da morte/ Ofende a noite de setembro?, diz já na primeira estrofe.

Eis a quarta: ?Neste ar neutro/ Em que os cegos arranha-céus usam/ Toda sua estatura para proclamar/ A força do Homem Coletivo/ (…) De dentro do espelho eles encaram,/ A face imperialista/ E o equívoco internacional?. Na penúltima, um alento: ?Tudo que tenho é uma voz/ Para desfazer a mentira encoberta,/ A romântica mentira no cérebro/ Do sensual homem das ruas/ E a mentira da Autoridade/ Cujos prédios atingem o céu?. O final é uma das frases mais conhecidas do idioma inglês: ?(Possa eu) mostrar uma chama afirmativa?.

Em 1994, uma onda audeniana como essa também acontecera, depois do sucesso mundial do filme Quatro casamentos e um funeral, com Hugh Grant. O personagem de Simon Callow, ótimo e culto ator, lê no enterro de seu namorado o poema ?Funeral Blues? na medida certa de emoção: He was my North, my South, my East and West,/ My working week and my sunday rest. Auden, como o personagem de Callow, era gay, mas seu poema foi decorado por amantes de qualquer opção sexual desde então.

Auden (pronuncia-se ?óden?), porém, não tem sido lembrado pelas editoras brasileiras. Apenas dois livros dele foram publicados: uma antologia de poemas, com tradução de José Paulo Paes e João Moura Jr., pela Companhia das Letras, em 1986; e uma coletânea de ensaios sobre literatura, teatro e música, A mão do artista, pela Siciliano, em 1993. E ambos estão esgotados há muito tempo. A antologia, embora competente, tem apenas 39 poemas, de uma obra que soma centenas. E não inclui poemas importantes, como o citado ?Funeral Blues? e um dos melhores de Auden, ?As I Walked out one Evening?, em que o narrador reproduz o canto de um amante às margens do Tâmisa, com os célebres versos And a crack in the tea cup opens a lane to the land of the dead.

O verso resume bem o final daquilo que hoje é conhecido como ?fase inglesa? de Auden, que vai do início de sua carreira, em 1922 (ano em que T.S. Eliot publicou, em Londres, o poema ?The Waste Land?, assim como James Joyce seu romance Ulisses), até 1939, quando se muda para os Estados Unidos.

A imagem da xícara de chá rachada que se abre como uma alameda para a terra dos mortos é uma metáfora antecipada da Inglaterra em face de ameaça da guerra. Num correlato, a sonoridade de lane e land se prolonga até ser interrompida por dead. O jogo entre imagem concreta (xícara) e idéia geral (Europa em crise) é o que caracteriza Auden e lhe dá atualidade.

Sua produção poética começa melodiosa, sob influência de Thomas Hardy, misturada ao uso de palavras extravagantes inspirado em Hopkins e Yeats. Auden partilha com Yeats também a combinação de imagens com idéias, mas Yeats é mais inventivo e intenso do que ele. Nos anos 30s, esse filho de médico, nascido em York, criado em Birmingham e num internato em Surrey e graduado em biologia em Oxford, assimila de modo peculiar o marxismo que seduzia os intelectuais em tempos sombrios – como seus amigos Stephen Spender, Cecil Day Lewis e Christopher Isherwood – e leva para sua poesia uma crença no futuro que poetas como Eliot e Pound abominavam.

No final da década, no entanto, seu otimismo já não é o mesmo. E é nesse período que sua obra atinge o apogeu: em poemas como ?Musée des Beaux Arts? (?Sobre o sofrimento eles nunca se equivocavam,/ os Grandes Mestres?), as homenagens a Voltaire e Herman Melville, o réquiem para Sigmund Freud também em 1939 (?Quando há tantos que devemos lamentar?) e, em especial, o maravilhoso poema ?Em Memória de W.B. Yeats?, que se inicia com um verso memorável: He disappeared in the dead of winter, intraduzível para ?Ele desapareceu na calada do inverno?, pois se perde a sombra de dead. São três partes, cada uma em métrica diferente; a terceira também tem uma abertura inesquecível: Earth, receive an honoured guest:/ William Yeats is laid to rest (sem rima: ?Terra, receba um convidado de honra:/ William Yeats se deitou para descansar?). Se 1939 foi um ano de tantas perdas, Wystan Hugh Auden estava lá para registrá-las como ninguém.

Esses poemas são marcantes porque neles se misturam o bom poeta – de cadências agradáveis, métrica variável e palavras exatas, rimado e coloquial – com o intelectual público, o prosador crítico que trata de assuntos sérios ou eruditos com perspicácia e um dom de cunhar frases (como ?clima de opinião? ou ?era da ansiedade?) que só não supera os de Eliot e Yeats. É essa união entre o clássico e o moderno, o prosaico e o poético (aqui especialmente influente na poesia contemporânea), o privado e o público (crítico que era do homem comum e das autoridades), que é tão eficaz em Auden.

Quando ele se muda para os EUA, em 1940, e escreve sua belíssima ?Carta de Ano Novo?, passa a ficar cada vez mais clássico, abstrato, metafísico (e ele chega a publicar, por exemplo, um longo ensaio sobre Kierkegaard). Bastam os títulos de poemas como ?O Escudo de Aquiles? e ?Et in Arcadia Ego? para explicar. Há sempre passagens sublinháveis, mas o equilíbrio entre o sintético e o genérico se reduz. No entanto, ele já tinha aberto uma alameda somente sua no território da poesia moderna, uma chama que não pára de se reafirmar entre mortos e vivos, uma voz para desfazer mentiras de ontem e hoje.

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