Na Amazônia, trilhos e dormentes numa zona bem franca

?Um trabalhador morto por cada dormente posto? – é a frase-chavão que amiúde se encontra quando se procura algo mais a respeito daquela estrada de ferro amazônica. Desde livros até reportagens em velhas revistas, todos escrevem sempre essa mesma sentença.

A falta de imaginação acampa nos lugares-comuns. Mas nessa história, onde a via é mais carnal do que de madeira e de ferro, e mais segue por alcovas e leitos do que pelo leito da Amazônia, porque literalmente é uma verdadeira ?ama-zona?, até ficaria mais apropriado dizer-se: ?Para cada dormente, lá, uma cortesã eternamente dormente?. Às vezes eu me pergunto a respeito dessas atrizes da tv, que nessas sexonovelas ?encarnam? os mais ignóbeis papéis. Papéis nada higiênicos, por suposto, com cenas de absoluta degradação i-moral. Talvez não tenham outra alternativa, e sem saída, o fazem com nojo na alma. Ou então, serão elas espelhos vivos e conscientes de uma realidade generalizada e horrenda?

E como extensão não é documento, não é nem preciso uma longa novela para semear a tvpornografia. Também uma minissérie consegue trazer grande porcaria. Vide Mad Alcova. Será, talvez, que tudo isto faz parte de um plano para a implantação aqui de um ?Projeto de Pornopromiscuidade Total?? Decerto, nalguma noite, ainda se criará um ministério especial para isso.

(Até já imaginei uma xilogravura apropriada para ilustrar este infame teatro que às noites a milhões de telespectadores é impingido: dois trilhos estendidos sobre dormentes. E esses dormentes são piranhas. Mas não de rio. De alcova.)

O estoque de lama e lodo é ainda suficiente? Porque a reserva de piranhas, esta parece durar ad infinitum.

Vocês já prestaram atenção àquelas duas linhas vermelhas, que em cada capítulo aparecem, espraiando-se como lava, cobrindo e encarnando os dois trilhos? Não lembram ondas de rubor, nas faces de uma moça de família, de uma moça de boa formação? Pois eu acho que aquelas duas fitas escarlates nem foram ali colocadas pelos produtores das cenas. Penso que são tarjas que a própria história está desenrolando – tarjas de rubra vergonha.

Apesar das conquistas nesses últimos tempos obtidas, quanto a justos e merecidos direitos, todavia nunca antes teve a mulher no Brasil a sua imagem mais desrespeitada, ultrajada, do que agora. A imagem feminina aqui é pisoteada na lama da mais doentia anormalidade. É joguete-objeto nas garras de uma certa ?mídia?, perversa e pervertedora, que aqui se instalou e que aqui manipula a seu bel-prazer. E essa mesma imagem, criminosamente, é também exportada ao exterior. ?Tipo exportação.?  Viva!

Vai faltar lodo no país. Bem logo será necessário importar lodo.

A vitrine maior para se mostrar isso, para se denegrir a mulher no Brasil, é sem dúvida a tela do televisor. É num moto-pérpetuo que isto lá se mostra e se induz. Em primeiro lugar nas telenovelas. Mas também em ?programas de auditório? e ?humorísticos?. Lá está a imagem da mulher, sendo conspurcada. E nem se comentam aqui as pornoschanchadas. E a propaganda comercial na tv? Muitas firmas e marcas de longa tradição e respeitabilidade, para vender os seus produtos, não se envergonham em descer aos subsolos do pornô e do bordel generalizados, buscando ali chamarizes e atrativos… Vide marcas de cerveja, celulares e automóveis entre muitos outros produtos. E viva a pornopropaganda para marcas de pornorrespeitabilidade! A pornomídia rege, virtual e material, este comércio da carne feminina. Será que nessas cenas escabrosas, tanto novelescas como publicitárias, trabalham também mulheres das famílias dos produtores? E penso com pesar: muitas dessas marcas, durante decênios, provaram ser boas, honestas e, logo, familiarmente simpáticas. Já mereceram o respeito e a confiança de nossos avós. E esta sólida e limpa fama, pelos nossos ancestrais foi passada a nós, os atuais compradores e consumidores.

Como é possível que estas verdadeiras legendas precisem agora apelar para um tipo de propaganda vulgar e até imoral? Algo que nem sequer artigos de R$ 1,99 precisam? E fica uma desagradável dúvida no ar: será que a atual qualidade material dos produtos destas antigas e honradas marcas é também a antiga? Ou é igual às qualidades éticas e morais destas suas ?modernas?, porém, pornôs, propagandas?

Do mesmo modo como nesta Terra de Santa Cruz Credo pouco se lê, também pouco se olha e se vê. Aqui falando especificamente da propaganda gráfica por revistas. Nem é caro o preço destas publicações. Porém mesmo assim, não muito acessível à maioria dos mortais comuns. E assim, por este caminho, que apesar de tudo é o ideal, pois a imagem impressa perdura, enquanto é fugaz e passageira na tv, ela acaba infelizmente não atingindo a Grande Multidão. Que, no entanto, é voluntária dependente e dócil escrava da tv. E de preferência, claro, sempre presa ao canal e à programação de maior ?inqualidade?. De certa maneira, a propaganda gráfica por meio de revistas deve ser um oneroso e pouco rentável bombardear. Quase como os maciços bombardeios do Tio Jorge Arbusto, em suas fiasquentas estripulias em terras do Oriente. E também porque é preciso que o leitor seja bom observador e tenha um mínimo de interesse e inata sensibilidade pelas artes gráficas. E de novo é a minoria que trilha o caminho melhor, um caminho mais elevado. E é para estes a boa propaganda impressa. As propagandas éticas, inteligentes e belas, elas ainda existem. Verdadeiras obras de arte. E que, não poucas vezes, valem mais do que todo o restante conteúdo de uma revista.

Quanto aos grandes painéis de propaganda, junto às movimentadas ruas e avenidas, com a pressa e a desesperada agitação, chicotes que a todos hoje escravizam, tampouco eles são olhados e analisados devidamente. Mesmo que as senhoritas, ou talvez senhoras, belíssimas, coloridas e sedutoramente ali expostas, tenham superfícies e dimensões dinossáuricas, portanto impossíveis de não se ver. E mesmo, também, que seus generosos decotes de muitos metros quadrados de superfície (ou seria metros cúbicos?) deixem antever seios do tamanho daqueles enormes motores radiais dos aviões da 2.ª Guerra Mundial.

Mas aqueles que ainda sabem apreciar verdadeiramente uma boa propaganda impressa, irremediavelmente sempre serão uma grande minoria.

Para todos aqueles que, mesmo já adultos e crescidos, continuam dependentes do desenho animado, veio esta outra droga: a televisão deturpada e deturpadora. Percebe-se nessas pessoas dependentes, como que uma paralisante incapacidade quase orgânica, para ver, olhar e se interessar por algo que não se move, que fica estático. Por mais interessante e atraente que aquilo possa ser. Necessitam desesperadoramente ver tudo em movimento. Personagens, objetos e ambientes, tudo se mexendo, pulando. E junto a isso, claro, os correspondentes e ensurdecedores ruídos, barulhos. Talvez já tenham eles nascido para um determinado condicionamento visual-auditivo. Não há braile que os salve. São cegos definitivos. Mesmo para a mais bem elaborada propaganda, quando esta é imóvel, estática. Como na propaganda impressa.

Não possuem a feliz capacidade de sentir a alma que existe na matéria aparentemente inanimada. Se, por exemplo, ficam extasiados com aquela propaganda que, na televisão, mostra uma bela mulher ondeando sensualmente, quando, porém, vêem a mesma propaganda impressa no papel, até mais vistosa do que na tv, mas imóvel, nem um pouco se entusiasmam… Num terreno onde não existe imaginação, só o inço cresce. Talvez, se eles deitassem essa revista no peitoril de uma janela aberta, e aberta também a revista na pagina que traz aquela propaganda, para que o vento, lúbrico, a ondeasse, isto, quem sabe, poderia ajudar…

O lado ruim da televisão, que é muito maior do que você imagina, conseguiu viciar e envenenar a Grande Multidão. E nunca se detém. Lá está. Como se fosse uma zarabatana, oculta numa obscura e sinistra mata, expelindo sem trégua e sem piedade seus dardos envenenadores…

Também por isso o ataque massacrante da tv é vitorioso e domina. Dele quase ninguém consegue se furtar de todo. De uma ou de outra maneira lá está ela. Tremulante, impessoal e sorrateira figura, sempre se antepondo à cara de todo mundo. Do limpo ao imundo. Culto ou inculto, ninguém dela parece poder escapar. Nem mesmo aquele andarilho em andrajos e esfarrapado também de alma. Ao deter-se ele ante a porta do mais mísero botequim, eis que lá dentro, na penumbra, está um televisor olhando-o como se já o esperasse sempre. É um daqueles antigos aparelhos, ainda em preto-e-branco. Velho, no anoitecer da existência, quase moribundo. Sua tela, fosca e suja. Muitas moscas ali já pousaram. Todavia, por trás do mortiço vidro, o velho televisor ainda está vivo e firme, determinado a cumprir a pérfida missão que pelos seus mentores lhe foi imposta… A vitima desta vez é apenas aquele andarilho. Roupas, corpo e alma em farrapos. Ainda assim, arremedo de gente, passa por um ser humano. E isto é o que importa e é o suficiente para o televisor na sua missão. E o velho e fosco televisor, mesmo em preto-e-branco apenas, lança as suas imagens-intenção nos olhos do andarilho. Porque os olhos são as portas para o assalto do aríete das imagens. Se havia ainda alguma resistência ela já está rompida. E as intenções, vitoriosas, entram juntas, para se apossar da mente e do espírito… Para a televisão nenhuma vítima é ínfima demais. Portanto, nem mesmo aquele andarilho, aquela ruína humana. Porque, apesar de tudo, ele deve ter ainda algo de cérebro. E isto basta. Pois onde há uma mente, que seja tosca ou esteja ela em escombros, há ali também um espírito ainda a corromper.

A má televisão e os seus mentores não são os únicos culpados por este podre estado de coisas. Embora a culpa mor esteja lá. Do lado de cá do televisor, estão milhões de olhos e mentes, os quais, com o seu patológico entusiasmo e deslumbramento, e, portanto irrestrito apoio, dão o alimento àquele monstro com rosto de vídeo e junto dão o domínio aos seus mentores.

Eis aqui uma hipótese por certo utópica – melhor seria se fosse uma medicação tópica: se ao menos uma considerável maioria da imensa manada dos teleolhadores cativos, de súbito, boicotasse esses programas péssimos. Isso significaria uma sentença de morte para essa mórbida corrente contínua. E o tão cuidadosamente cultivado ibope rapidamente se transformaria num ?i-bode?, daria um bode. Todavia, por ora ao menos, antes de acontecer isso, ficaria o mundo quadrado. Pois, através da história, a Grande Multidão sempre provou ser o mesmo esterco, perdão, a mesma estofa… Pois ela é também a Grande Manada. Seculum seculorum.

Brasil. Uma nação verdadeiramente étnica-multinacional, pelas nacionalidades que abriga, ou um Brasil sob os signos multis & dívidas?

Seus habitantes nativos, que restaram do extermínio, e mais todos aqueles povos que dele fizeram a sua segunda pátria, escolhida ou não, compõem este colorido e impressionante leque multirracial e multicultural. Já um outro tipo de multis, que para cá também vieram, focinhos frios, impessoais, tem como objetivo apenas os seus interesse$: são as multinacionais.

Se quiseram, naquela minissérie, mostrar que o Brazil, com ?z?, já então estava nas garras rapinas vindas de fora, chegaram tarde. Essa imagem de um país, desde o seu começo, eternamente endividado em berço esplêndido, está sempre presente. Seculum seculorum. Tem-se dúvida, pelo menos no que respeita à descoberta oficial e cabralina, se foi realmente Cabral quem chegou antes, ou se os podere$ e interesse$ financeiro$ ?de fora? aqui já o e$peravam. Basta olhar para aquela famosa tela da primeira missa no Brasil. Que aliás então ainda nem se chamava Brasil, nem com s nem com z. Nesta tela fica bem visível e indiscutível que já naquele tempo estava-se devendo as calças: nos galhos das árvores, os índios, pelados, provam isto. É comovente! Observar como este canal tv dominador se preocupa, tão sinceramente, em ensinar ao seu povo, fiel e a ele preso, a criar consciência cívica, patriotismo. E isso se repete em todas as suas novelas-novelo. Infalível e indefectivelmente, lá aparecem figurantes novelescos, em piegas diálogos. Sempre num tom professoral, fazem educadas críticas e tecem moralistas considerações a respeito da realidade social da nação. A artificialidade é tão oca, que os pobres atores, por melhores e esforçados que sejam, não conseguem esconder isso. O oco é grande demais. E nesses sublimes momentos, as costumeiras e tradicionais cenas ?românticas? são piedosamente veladas por uma cortina de filó furado.

Lacrima vertentis

Choram lágrimas de crocodilo os jacarés. Lá na Amazônia. Choram borrachudas lágrimas de látex as seringueiras. Lá na Amazônia. Mas por que choram? Por romântica emotividade globolizada? Ou terão sido infectados pelas aberrações encenadas por aquela mísera-série? Talvez uma nova espécie de conjuntivite televisiva e globolizadoramente infecciosa? Não. É mais do que isso: perplexidade, raiva e frustração. Eis o que faz verter aquelas lágrimas. Porque essa bomba foi pior do que uma bomba de gás lacrimogêneo de verdade. Essa aqui faz chorar até a alma que está na matéria.

Ad nauseam.

(Continua na próxima semana)

Ivahy Detlev Will é da Academia de Letras do Vale do Iguaçu – União da Vitória -PR

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