Fragmentos de uma história recente

d51.jpgAlguns livros cativam pela despretensão, talvez a melhor maneira de pegar um leitor pelo pescoço. O mais recente de Zuenir Ventura (Minhas histórias dos outros, 1.ª edição, Editora Planeta, 272 páginas), pertence a este categoria. Jornalista e escritor, Zuenir estreou em livro no vigor de seus cinqüenta e poucos anos com um antológico relato dos acontecimentos de 1968. Depois vieram outros livros e agora este em que costura pequenos relatos de períodos e pessoas da recente história do Brasil, períodos e pessoas que o autor conheceu num privilegiado posto de observação que foram as redações em que trabalhou no Rio. No livro, desfilam episódios envolvendo Nelson Rodrigues, Glauber Rocha, Rubem Fonseca, Wladimir Herzog, Pedro Nava, para ficar em alguns nomes.

Sobre Nava, o autor aborda uma questão da imprensa brasileira que era (e talvez seja) o espírito de corpo quando o assunto é amigos ou conhecidos. A questão da homossexualidade de Nava omitida nos textos sobre a sua morte permaneceu uma dúvida cruel na cabeça do leitor: ele era ou não era? Não se trata de curiosidade mórbida. A revelação era peça chave na morte do escritor, ameaçado por um garoto de programa. E ninguém tocou no assunto para não macular a memória do amado defunto. Uma revelação tardia, mas bem vinda, porque pouco ou quase nada se falou no assunto posteriormente, ainda que hoje não seja tabu.

Sobre Fonseca, há o relato do dia em que o escritor, conhecido por seu mutismo, abriu a boca numa entrevista e noutra assumiu a condição de entrevistador e colocou Fidel Castro na parede. O livro é repleto de coisas do gênero, que fazem o leitor ir sem pressa até o fim, ainda porque não é necessário devorar tudo de uma vez. Cada capítulo é uma história que se encerra em si mesma.

Mas quem pensa que o autor fala apenas dos outros, engana-se. Falar dos outros foi artifício que achou para falar de sua trajetória, sem o prepotente, ?eu vi, eu fiz, eu fui e aconteci?. Não é do jeito dele. Zuenir vai contando como quem não quer nada a história de um sujeito que trabalhava no arquivo de um jornal carioca e ascendeu a categoria de jornalista no dia em que Albert Camus morreu e o editor precisou de alguém para um obituário decente. Pediram um artigo ao moço do arquivo, ele compareceu e não parou mais de escrever. Nas páginas seguintes encontramos o nosso ex-arquivista flanando pela Paris dos melhores dias do pós-guerra e dando um pulo em Saint Tropez para testemunhar o nascimento do biquíni. E por aí vai, com um texto que mais parece uma conversa num fim de tarde em Ipanema ou Leblon (ou qual seja a praia do Zuenir).

Para uma conversa tão boa, surpreende que o livro termine com um doloroso e autodilacerante relato do autor sobre um garoto que testemunhou a morte de Chico Mendes. O garoto por uma destas obras do destino, acabou criado pelo jornalista no Rio de Janeiro, em meio a uma sucessão interminável de alcoolismo, quedas, recomeços, mudanças de cidade e de escolas, esperanças que ainda hoje se alimentam numa cadeia angustiante. Esta é uma narrativa com dúvidas e meas culpas, como uma espécie de autojulgamento. No leitor funciona como um direto no queixo bem no fim da leitura.

Assim, o livro (para ficar num bom e velho clichê) traça um painel da vida brasileira, do final dos anos 50s, até hoje, com passagem pelos tumultuados anos 60s, a atmosfera sufocante dos anos 70s, a morte de Herzog, o fim dos anos duros da ditadura, a morte de Glauber, a redemocratização, o fascínio sobre a esquerda carioca, incluindo as mulheres, naturalmente, dum líder metalúrgico paulista que agredia o vernáculo sem piedade, o recomeço da democracia com indesejável José Sarney, violência no Rio, guerrilheiros posando de bandidos, bandidos posando de guerrilheiros, tudo está lá em doses dietéticas nas páginas do livro de Zuenir.

O livro poderia ter outro nome. Algo como ?A coisa que não deu certo?. Qualquer um menos elegante, porque é o relato de um observador da realidade brasileira sobre as pessoas que sonharam cada uma a sua maneira com um país melhor e se frustraram porque o sonho ainda não deu certo. Pessoalmente gostei dos capítulos sobre Glauber Rocha e Nelson Rodrigues. A revelação da ausência do cineasta na entrevista que deveria conceder em sua consagração em Cannes reforça o caráter surrealista de um cineasta expressionista. Glauber ficou nervoso e teve um desarranjo intestinal. Nelson Pereira dos Santos falou em seu nome.

É também deliciosa a narrativa da rivalidade entre o Nelson Rodrigues e Tristão de Athayde, a origem num prosaico telefonema e o fim patrocinado por Zuenir, num encontro emocionado entre dois velhinhos que tinham uma forma estranha de se entenderem. Enfim, aparentemente não preocupado em escrever outro grande livro 1968, O ano que não terminou, é obrigatório para quem deseja conhecer o período Zuenir atravessou a mesma linha de chegada, desta vez sem pressa e sem o alvoroço de um bólido, como o primeiro livro.

Desta vez, de bicicleta, pedalando. Que devagar se vai longe. A foto na capa do livro em que Zuenir pedala uma bicicleta com Rubem Fonseca na garupa dá o tom. Um livro despreocupado, que acha uma nova maneira de contar uma velha história. A nossa velha e triste história recente.

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