Exploração capitalista e redistribuição estatal vistas pela antropologia

A recuperação da teoria de Marcel Mauss (1872-1950), sociólogo francês e crítico de marxistas e liberais, é uma alternativa para podermos pensar em superar a forma de organização política do Estado burguês-democrático no qual estamos condenados a existir. Este Estado, assim como o mercado auto-regulável e autônomo que o acompanha, nos condena a excluir, disse Marcos Lanna, antropólogo, doutor, pesquisador de Mauss há 20 anos, e professor da Universidade Federal do Paraná, que ministrou a palestra Marcel Mauss: Comunismo e Estado, dia 20 de outubro, no Ciclo de Conferências do Sesc da Esquina em Curitiba Tecendo o presente: autores para pensar o século XX.

O palestrante toma como base de sua exposição a obra O ensaio sobre a dádiva (1923-24), escrita por Mauss, fruto de seu olhar etnográfico sobre a Rússia e de suas análises das etnografias referentes à Melanésia e a outras sociedades aparentemente sem Estado. Trata basicamente da circulação dos dons e das mercadorias. Como dom Mauss entende todo tipo de doação, empréstimos, dívidas, circulações não-mercantis, até mesmo os tributos, na forma de alimentos, inhames, presentes, entre outros, mas questiona-se também sobre em que medida o dom pode conviver com o mercado.

Nessa obra, Mauss utiliza o termo prestações totais, ou obrigações, para se referir às trocas de presentes, ritos, serviços, mulheres, crianças e festas, além de bens e riquezas, etc., presentes nas sociedades aristocráticas Maori e Kwakiutl. A obra argumenta haver passagem das prestações totais das sociedades primitivas às prestações agonísticas das aristocracias antigas e destas para o mercado. Após 10 anos, Mauss, substitui o termo prestações totais por comunismo, sinônimo de modalidade do dom, não de propriedade coletiva, explica o professor.

Ao tecer relações entre estudiosos, como Marx, Polanyi e Dumont, entre religiões e sistemas, como o liberalismo, o cristianismo e o capitalismo, e entre temas, como hau, potlach, e ao analisar se a pessoa é ou não possuída pelas coisas, Lanna vai questionando sobre o sentido do interesse individual no capitalismo, que se dá ao contrário dos interesses coletivos. Lanna endossa assim a crítica de Mauss ao liberalismo; para esta escola de pensamento não haveria esta contrariedade entre interesses individuais e sociais. Enquanto nas sociedades aparentemente sem Estado as trocas se realizam entre coletividades, elas mesmas ?pessoas morais?, que são representadas pelos chefes nas trocas, no capitalismo a negociação ocorre através de indivíduos, que são ao mesmo tempo as pessoas morais do sistema.

Como teria surgido o interesse individualista? Para responder, o palestrante recorre à Roma antiga, cujos senhores espalhavam moedas para as multidões com o intuito de assistirem sua alegria de recolhê-las e mostrar superioridade. Com o cristianismo, através da teoria cristã da dádiva, proibiu-se a distribuição de moedas, mas manteve-se a ideologia da generosidade, como se fosse possível a dádiva pura.

Lanna defende que a dádiva pura não existe, pois sempre há expectativa de retorno. Se o cristão pratica a caridade, ele o faz pensando na graça da fé ou até mesmo na submissão do outro, no seu agradecimento ou no seu silêncio. O que existe é assimetria e desigualdade. A dívida também é uma forma de trocar. A retórica de que algo possa ser dado sem expectativa de recebimento, infelizmente, diz o palestrante, ?é um valor estrutural do cristianismo?. Enquanto isso, os brâmanes aristocráticos são mais compreensíveis por se assumirem como superiores em suas próprias distribuições.

Para Mauss, a circulação da dádiva e da mercadoria ocorre tanto nas sociedades sem Estado, a exemplo da Melanésia, quanto nas sociedades capitalistas. O trabalho só é mercadoria porque é também dádiva, consciente ou inconscientemente. Com Mauss, a exploração capitalista somente será superada se houver redistribuição estatal, pelo fortalecimento da previdência social e pela iniciativa dos proprietários quanto à previdência privada. Já que o trabalhador dá sua vida e beneficia toda sociedade, merece sua seguridade em vida. Mauss tem algo diferente a dizer: o dom, que existia antes do capitalismo, coexiste com ele através do que Levi-Strauss posteriormente chama de reciprocidade.

Ao ser interrogado durante a palestra sobre o Programa de Garantia de Renda Mínima, defendido pelo senador Eduardo Suplicy, e quanto à exclusão social brasileira, Lanna respondeu que o Programa é uma forma de dom. ?Lamento que só estão fazendo isso agora. Mauss já alertava para essa necessidade em 1925 e pouco se avançou.?

Quanto à exclusão social, o palestrante sugere que a antropologia, a grande ciência social, que ainda está oculta para muitos, analise como o Estado burguês pode excluir. O palestrante reconhece a importância da iniciativa do Movimento Antiutilitarista em Ciências Sociais (MAUSS), que ao estudar relações como a confiança, por exemplo, faz etnografia da dádiva. Mas enfatiza que para Marcel Mauss, o desafio é estudar o Estado, a Bolsa de valores como transformações de formas arcaicas de dons.

Além destes, muitos outros aspectos e conceitos foram apresentados. Para a aluna de Ciências Sociais, Aline Iubel, ?o professor Lanna ofereceu um belo esboço ou resumo do que é considerado como o mais relevante: a dádiva, aspecto universal das sociedades humanas, portanto, indispensável para pensar o século XX. Ele inovou para os conhecedores, incentivou os leigos e instigou todos a pensarem o século XX também a partir de uma perspectiva maussiana.?

Zélia Maria Bonamigo é jornalista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná – zeliabonamigo@uol.com.br

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