Simplesmente humano

Escritor Valter Hugo Mãe lê texto inédito em festival curitibano

O lirismo é a chave para compreender os romances de Valter Hugo Mãe, que esteve em Curitiba nesta quinta-feira (07) para participar do festival literário Litercultura. Nascido em Angola – mas criado em Portugal -, o escritor começou seu trajeto literário pela poesia, gênero que nunca pôs de lado e, ao contrario, usou para rechear sua prosa.

Seu livro mais recente, A Desumanização, é o retrato fiel da natureza gregária do homem, que vê no outro a única possibilidade de estabelecer a sua vida. Após a morte de sua irmã gêmea Sigridur, Halla, que tem apenas 11 anos, vê no corte que Deus fez em seu reflexo a chance de se desenvolver como peça individual de um quebra-cabeça social. A história, que é a primeira do autor a se passar fora de Portugal, acontece na Islândia, mas nem por isso fala menos a nós, brasileiros.

Como nos livros anteriores, a sabedoria sai da boca de gente simples, pessoas comuns que precisam se submeter ao jugo de um senhor – que pode ser um deus, um patrão, um “coronel” ou mesmo um país – para continuar a viver, ou puramente existir.

Doce solidão

Hugo Mãe é um homem singular em que a literatura não é apenas o seu sustento, mas a sua alma e uma forma de encontro com um conhecimento superior, que muitos atribuem ao místico ou divino. “Eu acredito em Deus somente em alguns dias da semana”, brinca.

Para Valter, a maior dádiva do ser humano está no poder da transcendência, em que somos aquilo que vivemos e as pessoas que conhecemos. Assim, os mortos não morrem, pois eles continuam a viver em nós. E a possibilidade de transcender é também o poder de se afastar do vazio. “Trabalho com a solidão porque fujo dela”, explica e completa: “tudo que parece solidão nos afasta do que é humano”.

Crisótomo, personagem de O Filho de mil homens, encontra Camilo, um órfão que lhe aparece à porta, e vê naquele garoto o filho que tanto sonhou – e não teve -, mas, antes de tudo, percebe no menino a única forma de transcender, permanecer vivo quando seu corpo estiver submerso por terra, e fugir da solidão.

Ser o filho de mil homens é estar cercado por gente sua, é olhar no espelho e ter a sensação de pertencimento.

O sentido da vida

Mas o escritor não é só capaz de ser criador: ele também é criatura. Valter Hugo Mãe é um dos personagens do documentário O Sentido da Vida, de Miguel Gonçalves Medes – responsável por José e Pilar. O filme contará a história de quatro personagens, um doente terminal (Miguel, mas não o cineasta), um escritor (Valter), um político (Dilma Rousseff) e um filósofo (Alain de Botton). Apesar das diferentes atuações sociais, todos eles irão convergir a uma única pergunta: “qual o sentido da nossa existência?”.

O longa deve estar pronto somente em 2016 e teve seu título emprestado de uma produção do grupo Monty Python. No entanto, quem conhece a obra de Hugo Mãe sabe que esse questionamento é comum. As diaristas de o apocalipse dos trabalhadores tentam enxergar no cotidiano conturbado algo que faça suas vidas valerem a pena.

Ciciro Back
“Trabalho com a solidão porque fujo dela”.

Brincos

Desde o início de sua carreira, Valter Hugo Mãe criou polêmica ao escrever – inclusive seu próprio nome – com letras minúsculas. Nascido Lemos, ele abandonou o sobrenome familiar e adotou o apelido Mãe. “Decidi não usar o nome de meu pai porque ele combina muito bem com um bancário, mas não com alguém que quer viver o universo literário”, comentou. Além disso, ao chamar a si mesmo de Mãe, o autor desfaz o machismo inerente à cultura ocidental. Esse posicionamento fez, justamente, com que ele estivesse, ligado a grupos feministas e pelos direitos da mulher.

“Só deixei de escrever com letras em caixa baixa porque as pessoas me enchiam o saco”, brinca e completa: “quando eu for velho vou reeditar todos os meus livros em minúsculas novamente, inclusive, os que escrevi com maiúsculas”. A mudança aconteceu com O Filho de mil homens, lançado em Portugal em 2011 e um ano depois no Brasil. O escritor contou que os leitores reclamavam que não sabiam onde parar de ler. “E o ponto? Está ali, pequenininho, mas está. Não fui eu que inventei ele assim”, brinca. “Pensei em colocar pontos do tamanho das letras, mas ia parecer que as páginas tinha brincos”, arremete debochado.

Leitor ideal

Para Hugo Mãe, grande parte do problema ao redor da literatura está nos leitores. “Imagino o meu leitor em uma sala confortável, sem TV, em uma poltrona, com uma bebida do lado e não como eu sou como leitor”. O fato de que nem sempre quem lê o livro dá a mesma atenção a certas passagens – escritas com cuidado artesanal – é motivo de uma preocupação utópica do escritor. “O livro é uma conspiração para te levar a essa passagens”, diz Valter, aos risos.

Mesmo sabendo que esse ideal de leitor é uma meta impossível, ele acredita que ainda é possível salvar o mundo, da mesma forma que também acreditava quando era apenas um menino. Essa necessidade de ser um herói – ao menos de si mesmo – é também a libertinagem do autor como prosador e poeta. Pelos olhos de Valter Hugo Mãe, ser herói é, antes de tudo, simplesmente humano.

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