Edward Bellamy, esse Ilustre Desconhecido

Com a expansão industrial ocorrida nos Estados Unidos, principalmente a partir da segunda metade do século XIX, houve um notável crescimento das cidades. Tais como as grandes cidades européias, os grandes centros urbanos norte-americanos encontravam problemas como a miséria, a criminalidade e o conflito de classes, ao lado da exuberância de seus edifícios e das comodidades trazidas pelo desenvolvimento tecnológico. Neste contexto é que emerge Edward Bellamy, cuja obra principal, Looking Backward (Daqui a cem anos, na tradução para o português), tornou-se um dos romances mais populares na virada do século.

No final do século XIX Looking Backward foi impresso em vários milhões de exemplares e traduzido para mais de vinte línguas, o que é impressionante, especialmente se levarmos em consideração o fato de que o mercado editorial na época era muito mais restrito em comparação com os dias de hoje. Além disso, o romance influenciou decisivamente o pensamento de vários intelectuais ilustres, como John Dewey, William Allen White, Eugene V. Debbs, Norman Thomas e Thorstein Veblen. Poucos anos após a publicação da obra foram fundados 165 clubes com o intuito específico de discutir as idéias de Bellamy.

Um fato curioso nisso tudo é que, apesar do imenso sucesso alcançado em sua época, Bellamy é hoje um autor praticamente desconhecido, principalmente fora do cenário norte-americano. Numa enquete particular, junto a turmas de graduação e pós-graduação, procurei descobrir quantos alunos já haviam ouvido falar das obras Ben-Hur, A Cabana do Pai Tomás e Looking Backward (Daqui a cem anos), romances de sucesso que surgiram mais ou menos na mesma época. Quase todos eram familiarizados com o primeiro título, alguns poucos com o segundo e nenhum nenhum entre mais de trinta turmas! com o terceiro. A que se deve tamanho paradoxo?

Looking Backward contrasta a injusta sociedade urbana e industrial do século XIX a uma imaginária América socialista do futuro, na qual, por meio de um governo centralizado, todos viveriam dignamente. No romance, o Sr. Julian West, um jovem membro da classe mais abastada de Boston, é transportado para o ano 2000 após uma suposta noite de sono.

A sociedade do ano 2000, tal como descrita por Bellamy, não seria muito diferente em termos de tecnologia daquela existente no século XIX. As principais mudanças ficariam por conta da racionalidade do sistema econômico. Por meio de uma administração pública centralizada, aumentaria a produção e a jornada de trabalho seria reduzida. Isto porque o que era gasto em armamentos, propaganda e complexa distribuição de mercadorias, seria canalizado para o lazer e conforto material, pois nessa nova sociedade não haveria mais guerras nem competição de mercado. Diminuiria também o desperdício ocasionado por empreendimentos equivocados, crises periódicas e ociosidade de capital e trabalho. Na sociedade capitalista do século XIX uma distribuição igualitária da renda nacional ainda não seria suficiente para acabar com a pobreza. No fictício ano 2000, pelo contrário, à padronização da renda individual, somar-se-ia o aumento da produção e o fim do desperdício, o que em conjunto permitiria o bem-estar material de toda a população.

Talvez agora seja fácil perceber porque as idéias de Bellamy, que seduziram e arrebataram toda uma geração, tenham caído posteriormente na obscuridade. Após as horrendas experiências do século XX duas guerras mundiais, colapso econômico, regimes totalitários, genocídio etc. tornou-se imensamente difícil acreditar numa reconciliação das classes sociais antagônicas e numa conseqüente transição pacífica para uma sociedade justa e igualitária. Além disso, a experiência soviética demonstrou de modo muito evidente que a centralização administrativa, por si só, não é suficiente para garantir uma vida melhor para todos.

O sucesso de Looking Backward pode ser explicado pelo fato de que a sociedade americana do século XIX não estava atrás de um modelo de sociedade radicalmente diferente daquele encontrado nas grandes concentrações urbanas. O objetivo último não era fugir da cidade, mas expurgar seus pontos negativos, mantendo o modelo existente. Bellamy mostra, portanto, que o cidadão urbano do século XIX ainda estava aberto a uma visão otimista da sociedade. Esse autor respondia assim aos anseios de boa parte da sociedade de seu tempo, ao identificar a cidade como o lugar próprio e excelente de realização das novas capacidades humanas e do sonho, ainda que distante, de um mundo livre do flagelo da injustiça social e da escassez.

José Antonio Vasconcelos

é doutor em História pela Unicamp, professor e pesquisador na Uniandrade e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.

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historicismo@hotmail.com

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