É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras

O parágrafo 5.0 do Art. 231 da Constituição Brasileira afirma: ?é vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras (…)?. Apesar desta e de outras determinações que lhe reconhecem os direitos, e apesar de se afirmar que a sociedade brasileira é democrática, isso não vem acontecendo quando o assunto é o território tradicional indígena.

Entre muitos outros exemplos existentes no Brasil, trago hoje a história do grupo nhandeva-guarani que mora no Toldo Chimbangue II, no município de Chapecó (SC). Ele luta pela reconquista da terra indígena Guarani do Araçaí, localizada nos municípios de Saudades e Cunha Porá, no oeste de Santa Catarina, composto por cerca de 20 famílias.

Terra tradicional

Eles ocuparam sua terra até o início do processo de colonização da área, que ocorreu a partir de 1920. O Estado de Santa Catarina repassou o direito de colonização a empresas colonizadoras. Estas lotearam e venderam as terras ocupadas pelos guaranis a agricultores vindos de fora. E os guaranis foram expulsos a fim de que o processo colonizatório tivesse prosseguimento. Eles tiveram que se refugiar na Terra Nonoai (demarcada em 1911), e, a partir de 1998, passaram a reivindicar o retorno à terra tradicional.

Nair e o neto Potã.

A reivindicação tem ocorrido por meio de documentos, visitas e reuniões na administração regional da Funai (Fundação Nacional do Índio) de Chapecó, para que sejam tomadas providências quanto à realização do estudo sobre a sua terra. Fizeram isso até meados de 2000. Durante esse período, continuaram residindo na terra indígena Nonoai (RS), no qual vivem os índios caingangues.

De acordo com o representante da equipe de Chapecó do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), regional sul, Cleber César Buzatto, eles já enfrentaram situações extremas ao longo destes oito anos. No dia 10 de julho de 2000, eles promoveram uma retomada da terra. Saíram de Nonoai e acamparam no interior da terra reivindicada. Com isso, em setembro de 2000, a Funai constituiu um grupo de trabalho para identificação e delimitação da área. No entanto, em outubro de 2000, os guaranis foram violentamente despejados do local onde haviam se instalado três meses antes.

Despejo

Idalino.

Buzatto relata que as polícias Militar do Estado de Santa Catarina e Federal, cumprindo uma liminar de reintegração de posse concedida às escondidas por um juiz federal de Chapecó, sem que o Ministério Público Federal (MPF), a Funai e os guaranis tivessem sido comunicados, carregaram os guaranis em ônibus e seus pertences em caminhões e os despejaram na terra indígena Nonoai. Como também os caingangues daquela terra não foram avisados, eles, em forma de protesto, prenderam por mais de um mês os caminhões usados no despejo.

Os guaranis ficaram na terra de Nonoai por mais um ano (outubro de 2000 a outubro de 2001), e foram acolhidos pelos caingangues da Terra Indígena Toldo Chimbangue II, localizada no interior de Chapecó. Desde então os guaranis vivem em oito hectares da terra indígena do povo caingangue, Toldo Chimbangue II, no município de Chapecó. O reduzido espaço ocupado não permite o cultivo suficiente para garantir a alimentação na aldeia. Com isso, a dependência da assistência dos órgãos governamentais é acentuada.

Assistência falha dos órgãos governamentais

Segundo Buzatto, essa assistência tem sido falha e as conseqüências são visíveis. O cacique João Barbosa disse que a fome é mais uma habitante da aldeia, que faz tempo que falta água potável no local e que o frio, característico da região sul neste período, assola ainda mais os guaranis. Desde então, é nesse local que eles vivem. Não estão, portanto, vivendo na terra que lhes foi tirada e que reivindicam.

Enquanto isso, o processo administrativo que visa regularizar a terra guarani, iniciado no ano 2000, está ainda na fase de análise das contestações. O relatório antropológico, publicado em outubro de 2005, identificou e delimitou 2.721 hectares como sendo tradicionais do povo guarani. O prazo do contraditório venceu em meados de janeiro do corrente ano. Desde então, o processo encontra-se sob a responsabilidade da Funai para análise e emissão de parecer relativo às contestações apresentadas pelos agricultores, pelas prefeituras de Saudades e Cunha Porã e pelo governo do Estado de Santa Catarina.

O decreto 1775/96, que regulamenta o processo administrativo em curso, estabelece prazo de sessenta dias para a conclusão desta análise e emissão do referido parecer. No entanto, já se passaram mais de 130 dias e até o momento não há nenhuma manifestação por parte da Funai sobre o caso. Esse fato deixa os guaranis ainda mais apreensivos.

A legislação

Nhandevas-guaranis em momento de dança.

O Artigo 231 da Constituição Brasileira de 1988 diz: ?São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens?.

O Art. 232 proclama: ?Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo?.

A Lei 6.001 de 1973, art. 2.0, que dispõe sobre o Estatuto do Índio, lembra ao governo brasileiro alguns dos objetivos/deveres: ?estender aos índios os benefícios de uma legislação comum; dar assistência aos índios e às comunidades indígenas; garantir aos Índios seus territórios permanentes, garantir aos índios e às comunidades indígenas a posse permanente das terras em que habitam, reconhecendo o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais?.

A legislação assegura o direito a todas as pessoas, mas é preciso que ocorra a sua prática, pois, como me disse Buzatto, ?não é possível que essa realidade perdure numa sociedade que almeja ser considerada e tratada como democrática?.

Zélia Maria Bonamigo é jornalista, mestre em Antropologia Social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná zeliabonamigo@terra.com.br

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