Dom Quixote, segundo Will Eisner

Quando se anunciou, outro dia, a eleição da mais importante obra literária do último milênio, imaginou-se que a eleita seria A Biblia ou, quem sabe?, A República, de Platão, ou A Divina Comédia, de Dante Aligheri, ou, até, Os Lusíadas, de Camões. Surpresa geral. Quem subiu ao pódio foi Aventuras do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, da lavra do escritor espanhol Miguel de Cervantes Saavedra, cuja primeira parte teria aparecido em Madrid em 1605 e a segunda apenas em 1615. Trata-se de uma sátira à novela de cavalaria, predominante na Idade Média.

Todo mundo certamente já ouviu falar no belo trabalho de Cervantes. Mas, também certamente, muito pouca gente teve o prazer de lê-lo. O que é uma pena, pois deixou de conhecer um dos mais inspirados e significativos momentos da literatura mundial. Numa bem dosada mistura de ficção e realidade, Dom Quixote e seu companheiro Sancho Pança simbolizam a própria humanidade, sempre vacilante entre o sonho e a verdade. Tem-se que a obra foi baseada em um caso real de loucura, em que, influenciado pela leitura de novelas medievais de cavalaria, um homem sai pelo mundo, acompanhado de um fiel escudeiro, combatendo injustiças e inimigos imaginários.

Iniciação simplificada

Se o amigo leitor é um daqueles que, nestes tempos de exacerbada impaciência e muitíssimo pouco conteúdo, se sentiram desanimados diante do portentoso volume original de Cervantes, aqui vai uma sugestão mais… digamos, palatável – e não menos saborosa: está na praça O Último Cavaleiro Andante, uma adaptação feita, a guisa de introdução, por Will Eisner. A caprichada edição, com tradução de Carlos Sussekind, totalmente impressa a cores, em papel couchê e capa cartonada, destina-se ao público juvenil, mas também agrada – e como! – os marmanjos apreciadores de gibis.

Eisner, para quem não sabe, é um dos maiores gênios dos quadrinhos de todos os tempos; muito provavelmente, o último grande mestre da arte seqüencial ainda em atividade. Ele foi o criador do célebre The Spirit, um dos mais notáveis personagens dos comics e uma das mais bem sucedidas empreitadas no gênero, e, por isso, ainda hoje uma referência obrigatória. Posteriormente, Will Eisner partiu para o que ele próprio denominou “novelas gráficas”, entre as quais Um Contrato de Deus (editada no Brasil pela Editora Brasiliense, em 1988), New York – A grande Cidade (Martins Fontes, 1989), O Edifício (Editora Abril) No Coração da Tempestade (Abril, 1996) e O Último Dia no Vietnã (Devir Livraria, 2001).

Imagens & palavras

Para Will Eisner, que, durante anos, lecionou na Escola de Artes Visuais de Nova York, a arte quadrinizada é apenas uma forma artística e literária que lida com a disposição de figuras ou imagens e palavras para narrar uma história ou dramatizar uma idéia. Por isso, muitas vezes, têm sido ignorada como forma digna de discussão acadêmica.

“No entanto” – assinala ele -, “cada um dos elementos mais importantes da arte seqüencial, tais como o design, o desenho, o cartum e a criação escrita, têm merecido consideração acadêmica isoladamente”.

Mesmo assim, Eisner confia que os quadrinhos cada vez mais serão levados a sério, pelos críticos e profissionais.

– O rápido avanço da tecnologia gráfica e o surgimento de uma era muito dependente da comunicação visual tornam isso inevitável, justifica.

A busca do sonho

Em O Último Cavaleiro Andante, Will Eisner oferece ao bravo de La Mancha uma versão livre, bem-humorada e bem-acabada. A essência da mensagem de Miguel de Cervantes, no entanto, é preservada. Os ideais de amor e justiça do velho fidalgo de escudo, lança e armadura estão ali presentes. Até porque, como a maioria de nós, ele veio ao mundo atrás de um sonho… ainda que não seja possível realizá-lo. Depois de conhecê-los, o leitor com um mínimo de sensibilidade irá à procura da obra original.

A bela edição da Editora Schwarcz, publicada pela Cia. das Letras, foi encontrada na Saraiva Megastore, do Shopping Cristal. Se já estiver esgotada, poderá ser encomendada. O pessoal da casa dará um jeito de arranjar um exemplar para você, interessado leitor.

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