Crônica de uma morte anunciada

Bastante aguardado por sua repercussão no exterior, Abril Despedaçado, adaptação de Walter Salles para o romance do albanês Ismail Kadaré, está enfim em cartaz. Mesmo preterido na indicação ao Oscar de produção estrangeira, o filme caiu nas graças da crítica européia, conquistando o Leãozinho de Ouro, concedido pelo público jovem do Festival de Veneza, e o segundo lugar na National Board of Review. Também foi indicado ao Globo de Ouro e ao prêmio de filme estrangeiro da Bafta, academia inglesa de cinema e tevê.

Em casa, o filme foi alvo de algumas críticas não tão abonadoras, principalmente por ter estreado primeiro na Europa e Estados Unidos (com exceção da primeira exibição, que aconteceu na Bahia, onde o filme foi rodado), o que significaria produção “para consumo externo”. Por isso, Rodrigo Santoro veio na defensiva para a pré-estréia em Curitiba, na última segunda-feira. Chegou a pedir que a platéia “esquecesse tudo o que foi escrito” e assistisse ao filme “com a cabeça e o coração abertos”.

“É que algumas pessoas implicam com o filme por ele ter estreado fora, por ser do Walter e começam a falar mal antes de assistir”, justificou o ator. “Só queríamos contar uma história para o nosso público, que foi feita com muito carinho e dedicação”. Segundo ele, a estréia no exterior foi uma opção dos produtores estrangeiros, e uma questão de distribuição. “Temos que parar com essa coisa de meter o pau porque estreou fora, porque é o Walter, que é rico, bonito, ou porque tem gente da Globo… tudo isso é muito pequeno”, desabafou.

Abril Despedaçado é uma fábula sobre as intermináveis vinganças de famílias, que lavam a honra com sangue nas disputas de terras. No livro, esses conflitos acontecem nas montanhas da Albânia. Walter Salles optou por fazer uma transposição para o sertão do Nordeste brasileiro do início do século passado.

Esse caráter universal da história norteou a escolha de Rodrigo Santoro para o papel de Tonho, o filho do meio da família Breves. Depois da morte do filho mais velho, assassinado pela família rival, Tonho recebe do pai (José Dumont) a incumbência de “cobrar o seu sangue”. Cumprida a obrigação, o rapaz é jurado de morte pela outra família, que estabelece um prazo para “liquidar a fatura”.

Uma frase do patriarca dessa família (Everaldo Pontes) é emblemática: “A partir de hoje, tua vida se divide entre os 20 anos que você já viveu, e o pouco tempo que te resta pra viver”. “É importante ver no Tonho esse homem rasgado no meio, dividido entre o respeito absoluto pela família, que se traduz na obediência ao código de honra que o obriga a cometer um crime que não quer e a vontade de viver a própria vida, de deixar tudo para trás e amar pela primeira vez”, observa Rodrigo.

Num primeiro momento, causa estranheza a presença do “saudável” Rodrigo Santoro numa família que vive de fazer rapadura no sertão nordestino. Principalmente pelo contraste com o pai (o paraibano José Dumont), a mãe (a baiana Rita Assemany) e o irmão mais novo (o garoto de Ravi Ramos Lacerda, de João Pessoa). “Também fiquei surpreso quando o Walter me convidou para fazer um nordestino, mas ele deixou muito claro que não era um filme do Nordeste, mas uma fábula universal, que dispensava estereótipos regionais”, comentou o ator. “Não é Vidas Secas”.

Mesmo assim, a escolha do sertão baiano como locação foi extremamente feliz. O cenário a um tempo árido e imponente, e a luz natural, habilmente explorada pelo diretor de fotografia Walter Carvalho, irradiam a atmosfera sufocante do sertão. Mas a grande metáfora do filme é a bolandeira, a primitiva engenhoca de moer cana, que utiliza dois bois que andam em círculos para movimentá-la.

Numa das melhores cenas, os bois exaustos, libertos da “canga” que os prende à máquina, continuam andando em círculos. O mesmo conceito aparece numa das falas do personagem de Ravi – “A gente é que nem os bois: roda, roda e não sai do lugar”. Rodrigo completa: “A bolandeira é um círculo vicioso, um relógio que marca o tempo da história. Os personagens estão presos àquelas posições fixas, às engrenagens da própria vida”.

A performance do garoto também merece uma menção à parte. Escolhido entre centenas de crianças, Ravi – que fazia teatro de rua em João Pessoa – está brilhante como o menino sonhador que narra a história. Dividido entre o trabalho extenuante no canavial e a alegria ingênua da infância, o menino Pacu praticamente cria o destino que será trilhado pelo irmão mais velho. O garoto chega a ser precoce demais, com falas um tanto lúcidas e consistentes para a idade e as condições em que vive. Mas seu amor convence.

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