Correio IMS torna disponível cem cartas de 85 personalidades

“Nunca vi uma alma tão feia quanto a minha letra”, escreveria Clarice Lispector (1920-1977) numa carta perturbadora ao futuro marido, o diplomata Maury Gurgel Valente (1921-1994), em janeiro de 1941. “Existe também… sei lá o quê. Talvez qualquer coisa que valha a pena. Pelo menos para olhar do ônibus e sorrir. Ou senão, por que não se entregar ao mundo, mesmo sem compreendê-lo?

Individualmente é absurdo procurar a solução. Ela se encontra misturada aos séculos, a todos os homens, a toda a natureza. E até o teu maior ídolo em literatura ou em ciência nada mais fez do que acrescentar cegamente mais um dado ao problema.”

Valente responde à “marquesa de Maricá” se dizendo “pequenino” diante das palavras contundentes da colega de faculdade de direito, então com 20 anos recém-completados, com quem viria a se casar em 1943. “Oh, deusa Clarice! Sê clemente! Não pronuncies contra mim, com ar tão solene, a sentença da minha condenação eterna. Deixa-me viver pacatamente como bom sujeito. (…) No momento eu só tenho um grande problema – é saudade de você! O resto é bobagem.”

As missivas, nunca publicadas, integram o acervo pessoal de Clarice sob a guarda do Instituto Moreira Salles. E, agora, fazem parte do Correio IMS (www. correioims.com.br), site que torna disponível, a partir desta terça, 11, cem cartas de 85 personalidades como Pero Vaz de Caminha, Machado de Assis, Oswaldo Cruz, Monteiro Lobato, Vinicius de Moraes, Rubem Braga, Lúcio Costa, os imperadores Pedro I e Pedro II e suas amantes, a Marquesa de Santos e a Condessa de Barral.

Parte foi doada ou vendida ao IMS, parte foi pinçada pela coordenadora de literatura, Elvia Bezerra, em publicações e entre herdeiros ou destinatários. Ao poeta Armando Freitas Filho, ela pediu uma carta da amiga e confidente Ana Cristina Cesar (1952-1983). “Armando, passei esta noite de sexta-feira escrevendo a continuação da Aventura na Casa Atarracada (história fantástica à moda de Poe), e versificando seu poema Na Beira, com os Olhos Abertos, como uma louca a compor quebra-cabeças de mil peças. Não são mil, mas reparo outra vez a insistência de seus effes; de trezentos mil, parece, fizeram uma torre bem alta em Paris, e não era de marfim, mas puro ferro. Por obra sua escapei de me lançar do alto dela, mas no teu poema belo esse excesso, contraditoriamente, acredito, anuncia uma renúncia. (…) A literatura me perturba. Uma caixa cheia de cartões-postais me perturba. A renúncia me perturba. Até uma caixa d’água, um otorrino gauche, um índice onomástico. Tomo tudo na veia.”

A data está indicada no site como outubro de 1983, justamente o mês em que Ana C., poeta expoente da poesia brasileira dos anos 1970 e 1980, se jogou pela janela de casa. “Mas lembro que essa carta chegou dois ou três meses antes. Muitas pessoas que a conhecem acham que foi uma carta de despedida da Ana, por ter sido no fim da vida dela, mas não foi. Ela fala de se jogar de uma torre, mas é só uma metáfora. Ela estava bem, não estava na crise que teria de depressão”, contou Freitas Filho ao jornal O Estado de S.Paulo.

Ao neto de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) Pedro Graña Drummond, Elvia solicitou uma mensagem que fosse do poeta para a filha, Maria Julieta, e que ainda não fosse conhecida. Em 1950, entre assuntos comezinhos, está um relato sobre a política do País a “Juju Flor”: “Política em ponto morto. O Congresso está fechado, todo mundo em férias, e a aproximação Dutra-Getúlio parece que fracassou, com a mensagem deste no ano-novo. É difícil imaginar que candidato sairá disso tudo, havendo mesmo a suposição de que não sairá nenhum. Em todo o caso, o ministro da Guerra declarou que não admitirá golpes. Sua posição parece ser a mesma de Dutra, quando ministro de Getúlio, convertendo-se em fiador da legalidade: é candidato em potencial, a quem os golpes não interessam.”

De Otto Lara Rezende (1922-1992) foi escolhida uma carta de reclamação enviada de Bruxelas em 1958 para o amigo historiador Francisco Iglesias (1923-1999). O escritor mineiro estava furioso porque Iglesias não o havia contactado numa viagem a Paris, onde ele também estava: “É admissível que eu tenha então, até agora, superestimado a sua amizade por mim. (…) A amizade, para mim, vale mais do que Veneza”, diz a carta, outra inédita.

A maior parte do conteúdo já havia sido tornado público. Em alguns casos, o usuário pode ver também o manuscrito. É o caso de um relato do pianista Nelson Freire ao pai, José Freire Silva, quando menino: “Minha vida. Eu sou um menino de 8 anos. Eu me chamo Nelson José Pinto Freire. Eu nasci no dia 18 de outubro de 1944. Eu sou um menino que passo a vida alegre. Eu brinco muito com os meus amigos. Eu também brigo e brinco com os meus amigos. Eu mostro-lhe o meu desejo. Música, música. Eu lhe falo que termino com uma palavra. Eu acho ela simples. Fim”. Ao fim, da frase: “Oferece isso ao meu pai”. Como ilustração, notas musicais. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Voltar ao topo