Compras no Centro

O telefone anotado no pedaço de papel. Comando de restaurante, papel jornal. A letra da Avó do menino. O menino tinha vindo na lanchonete onde trabalhava Marly. Marly lembrava com carinho daquele dia, guardava o papel, qualquer coisa. O menino tinha vindo acompanhado da mãe e da avó. O trio vindo para o centro fazer compras. O menino que acompanhava a mãe e a mãe da mãe não parava um segundo. Marly atendia o balcão da pastelaria. A avó simpática. A mãe cansada, cuidando do filho inquieto, segurando as sacolas. A avó puxou conversa, Moça, me serve uma coca, um misto, coca normal mesmo. Beatriz, vai querer alguma coisa? Duas cocas, uma light. Um misto. Outro pro meu neto. Um pastel especial.

O menino não parava. A mãe ameaçava. O menino subia e descia do banco no balcão, não vá para a Rua, guri, fique aqui, olhe! Vai ver só quando chegar em casa! A avó bem feliz. Olhou para Marly. Comentou: Viemos para a Cidade, fazer compras. No centro. Eu gosto e de comprar no centro. De andar e falar com as pessoas. Isso, de shopping, não acostumei. Marly sempre achou engraçado. Em Curitiba as pessoas diziam que vinham para a “Cidade” quando vinham para o centro. A avó simpática. Em geral as pessoas que Marly atendia não eram assim, de puxar conversa. Mandavam vir a comida, pronto.

Marly trabalhava na lanchonete fazia pouco. Lanchonete e pastelaria. De tarde. De manhã, era diarista. Antes trabalhava em uma loja. Uma loja num shopping. Arrumava a loja. O seu guri, o Marlos ficou doente. O tratamento exigia a presença da mãe. O dono da loja disse, aqui os funcionários têm plano de saúde, os familiares, qualidade total. Quando o Marlos ficou bem doente Marly descobriu que não era funcionária. Que prestava serviço. Foi mandada embora quando começou a faltar para acompanhar as seções de radioterapia do seu guri. Nunca tinha imaginado, um toquinho de gente e tão valente: Agüentava firme, as agulhadas, o enjôo. Ainda dizia para a Mãe, não se preocupe, eu já fico bom. Marly só tinha o guri. Tinha um medo louco de perder o filho, um medo enorme, pavor. O médico do Erasto tinha dito, Olha, é bem grave. Tem tratamento. Marlos ficou carequinha. Foi lutando, lutando. Sarou. Saiu no exame que fez que sarou. Ia continuar crescendo, ia continuar sendo a melhor coisa da vida de Marly. O menino no balcão bagunceiro ainda. A mãe do piá preocupada. A avó simpática e Marly se olharam. Sorriram quietas, as duas. Marly achava bonita a bagunça do guri. A avó, que já tinha vivido bastante, também. A avó acabou sorrindo alto. Pare filha, deixe o guri, deixe. Deixe ele se divertir, fica o dia todo trancado no apartamento. A essa altura o menino já tinha ficado amigo do chinês da lanchonete. Os dois amigos. O chinês repetia as palavras em chinês. O menino repetia, dava risada, vinha contar para a avó no ouvido. A avó ria. Comentou, esse menino é inteligente, aprende tudo. Marly pensou no próprio filho.

Marlos tinha parado de estudar. Ia voltar agora. Perdeu o ano, não tinha importância. Marly ia estudar junto com o filho, toda a noite, sempre, sempre. O menino tinha decidido no Erasto que ia ser médico. Para ser médico tinha que estudar bastante. No fim, o guri ficou meio assustado com aquela coisa de hospital. Um dia disse, Mãe, quero ser Juiz. Um outro menino que também tratava a leucemia era filho de um juiz. O menino não agüentou, a doença foi mais forte. A doença levou o menino e deixou o juiz sem chão. O juiz continuava a visitar o hospital. Trouxe os brinquedos do filho para o Marlos. Deu um abraço no Marlos e desejou boa sorte, Deus te abençoe, estamos torcendo por você. Marlos gostou do juiz. Do juiz pai, valente ali, um cara grandão, falando com ele assim, tão de igual. Marlos perdeu o medo das pessoas depois que ficou doente. Viu que no final, todo mundo era igual. Entendeu isso, mesmo tendo só seus onze anos. O hospital amadurece. Marlos queria era desejar que o juiz triste superasse, tocasse a vida. Não sabia dizer essas coisas ainda. Pensou forte. Pro juiz sentir.

A paciência da mãe ia esgotando. A avó conversando com Marly. O menino bagunceiro entre pasteis e massas. Falando chinês, com seu novo amigo chinês. Gargalhavam. O chinês novo, falava mal português. Encantado com o menino bagunceiro. A mãe preocupada, filho, deixe o moço trabalhar. Vem cá. Deixe. A avó simpática e Marly criaram seu próprio mundo agora. Marly contou para a avó do filho. Que bom que ele sarou. Nunca tinha contado nada para ninguém, falado daquilo. A avó disse, bem sincera, saúde é tudo, eu falo para minha filha, criança tem que ser assim, correr. Depois que cresce fica quieta. A mãe do menino segurando as sacolas. Enterrada nas sacolas. Mais nervosa agora. A mãe da mãe, a avó, não ajudava. A mãe do menino falou alto: Por isso que não gosto do centro, não tem lugar para estacionar, depois tem que andar, lá tem praça da alimentação, a gente faz compra deixa ele na área de lazer. A avó, que já sabia a história de Marly, fingiu nem ouvir. O menino bagunceiro trouxe o chinês amigo pela mão: Vó, Vó, o Chang veio lá da China. Sabe que ele luta Kung Fu? O Chinês só ria, sorria, cumprimentava a avó. O menino largou a mão do chinês, subiu no colo da avó. Pisou numas três, quatro sacolas. O chinês entrou na cozinha, voltou com um bule de chá. Trouxe sorrindo, educadamente, para a avó tão gentil. A avó agradeceu com uma mesura. A avó foi se servindo do chã. Mãe, cê não vai tomar isso. Nem sabe o que é isso! Marly disse, é chá de jasmim, é digestivo. A mãe nervosa ignorou Marly. Havia ignorado até agora. Não dava para participar da conversa, que, nesse ponto, girava em torno das mudanças da cidade. Como cresceu. Aqui, o Centro, antes era o lugar do pessoal passear. Hoje, ninguém vem. Eu não gosto, essa história de shopping. Eu gosto de falar com as pessoas. Saber as histórias.

O chinês Chang escutando a conversa da avó, ao lado de Marly. Pano de prato sobre o ombro. Entendia alguma coisa. O menino bagunceiro sorvia uma coca, fagocitava um misto quente. Um pastel agora. Criança tem um apetite! A avó orgulhosa. Mãe, já disse, tem que controlar o peso. Essas coisas fazem mal. Tem que fazer ginástica. Deixa ele lá em casa, lá tem lugar para correr. A mãe ignorou, a mãe falou para a mãe: Mãe, vamos está ficando tarde, vamos. Ai, ai, minha filha, sempre assim apressada. A esposa do chinês entrou na loja. Trazia nas costas o filhinho, uns oito meses. Amarradinho nas costas. O menino bagunceiro ficou espantadíssimo: Mãe, olha, a mulher do Chang, olha o jeito que ela leva o filho, olha! A mãe constrangida, ignorou. A avó ensinou: As pessoas têm costumes diferentes. A mulher de Chang cumprimentou a avó. A mãe já tinha levantado. Vamos mãe. Tchau Marly. Até mais. Mande um beijão para o Marlos. Olhe, anote aqui meu telefone, meu marido é médico, qualquer coisa nos ligue. Não vou precisar ligar, pode deixar, o Marlos agora tá forte. Que bom, olhe, leve isso aqui de presente para ele. A avó tirou de uma das mil e duzentas sacolas um robozinho de plástico. A mãe nervosa protestou, Mãe, comprei, é aniversário do filho do moço que mora em cima do prédio, a avó cortou, deixe de ser boba menina! Tome, Marly, para o Marlos. Diga para ela continuar valente. Meu neto também se chama Marlos. Mas é com U, Marlus. Quase igual. Criança é sempre quase igual. Marlus com U deu tchau para Chang em chinês. A esposa de Chang riu, falou qualquer coisa em chinês para o marido. A esposa de Chang mexeu o braço do menininho apoiado no balcão da lanchonete. Repetiu, o que ouviu da avó de Marlus com U. Em chinês. Chang repetiu solene, com sotaque. Criança é sempre quase igual. Coisas que se aprendem conversando.

Aristides Athayde

é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce
aristides@aristidesathayde.com.br

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