Capitão de Nau Austera

Encravada no meio da Paulista, num grande prédio que abrigava o curso Objetivo, cinemas e emissoras de rádio e tevê, a Cásper Líbero era, nos anos oitenta, um lugar original. As longas escadarias evocavam a entrada de um senado romano cheio de ninfetas com remotos planos de fazer um curso universitário. Aquilo compunha um belo banquete visual. No quarto andar, depois de sair do elevador, um ambiente austero lembrava um colégio interno, com labirinto de salas e uma insuspeita quadra de esportes.

Num lugar assim, nada surpreenderia. Numa manhã, aparecia um sujeito mal humorado vendendo livros numa banca improvisada. Plínio Marcos. No outro, um alegre cartunista falava sobre democracia. Henfil. No entanto, surpresas acontecem em qualquer lugar. E ali não seria diferente. Numa manhã de março de 1980 apareceu na sala de aula um homem de sessenta e poucos anos, aparência de lorde inglês, ligeiramente calvo, terno xadrez bege claro com listras marrom escuro e ar de refinamento. Era o professor de Língua Portuguesa.

Parecia um sujeito difícil de engolir. Não que fosse mau. Era de aparência insípida, de outra época, jeito burguês e almofadinha. Gostava de fazer piadas para as garotas, como todo velhinho saliente. Mas aparências enganam, diz o bom ditado.

Péricles Eugênio da Silva Ramos foi um dos melhores professores da faculdade, naqueles anos. Um dos que tinha coisas interessantes a dizer, em especial sobre literatura.

Por que se fala dele agora? É que saiu pela editora Hedra um livro de poemas de John Keats (Ode sobre a melancolia e outros poemas, 152, págs, edição bilíngue), traduzido e organizado por Péricles Eugênio. Esta faceta vem mais uma vez à tona: Péricles foi grande tradutor. Embora Keats seja um dos grandes poetas românticos ingleses, o fascínio que exerce hoje é mais intelectual que emotivo. ‘A poesia da terra nunca, nunca morre’. Certo John, mas o mundo gira e a lusitana roda. ‘A beleza é a verdade, a verdade a beleza – é tudo o que sabeis na terra, é tudo o que deveis saber’. Oquei, John! Nada resiste a um bom poema Ainda mais em boa tradução. Uma boa tradução pode até salvar um livro razoável, mas nenhum livro bom resiste a uma tradução ruim.

Péricles gostava de conversar durante ou depois das aulas com os alunos sobre as traduções que fez. Contava segredos. E, melhor, os segredos de suas traduções. Ele não chegava a ser um John Keating, mas falava de literatura como uma coisa viva e cativante. Talvez porque a literatura fosse parte de sua vida. Traduziu Hamlet. Aliás, a mais fiel e bem feita em língua portuguesa, agraciada com menção honrosa pela Royal Shakespearean Society. Não é pouca coisa. Era um tradutor como poucos.

Na realidade, é possível dizer que existem três tipos de tradutores. Os péssimos, aventureiros que aproveitam a ignorância alheia para ganhar prestígio, porque tradução normalmente não rende dinheiro. Há os bons que atuam de vez em quando – categoria que inclui os que se dedicam a verter apenas um idioma -, como Antônio Houaiss, Bernardina da Silveira Pinheiro, Boris Schnaiderman, Castilho e Azevedo (por Dom Quixote), Donaldo Schüler, Ivan Junqueira, Ivo Barroso, José Luís Grünewald, Sebastião Uchôa Leite e mais alguns. E, enfim, os grandes tradutores. Categoria dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos. E de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São mestres no assunto.

As traduções dos irmãos Campos são tão propaladas que dispensam explicações. Péricles não dispõe de cotejo de seguidores, embora o número de pessoas que reconhecem seus méritos não seja pequeno. Por esta r a – zão, não é demais lembrar. De sua lavra saíram Moby Dick, sonetos de Shakespeare, poemas de Walt Whitman e Bucólicas de Virgílio. O homem conhecia grego clássico e latim, além de inglês, francês e alemão. Traduziu Virgilio, Melville, Brecht, Whitman, além de Yeats, Shakespeare, Góngora, Byron, Villon e Shelley.

Durante bom tempo era possível encontrar em sebos de São Paulo e Curitiba traduções esgotadas. Uma raridade era a de sonetos de Shakespeare, feita para um evento em Belo Horizonte, acompanhada de compacto duplo com gravação de Maria Fernanda, grande atriz e filha de Cecília Meirelles. Outra raridade são os poemas de Whitman, traduzidos para uma biografia esgotada. De Péricles e dos irmãos Campos se conclui que boa tradução não se limita a verter para um idioma, obra escrita em outro. Boa tradução é tarefa de recriar um edifício literário em terra estrangeira, levando em conta as características locais. Isto não sai da cartola. Foi Péricles quem disse repetido ad nauseam por Augusto e Haroldo. Ou vice-versa.

Cada tradução é uma aventura. Traduzir é como entrar num navio para perscrutar um mar desconhecido. Só os bons capitães chegam ao porto seguro. Os poemas de Keats não foram vertidos ao acaso, cada frase foi esculpida em novo mármore. Em Hamlet, há um pântano de significados diversos em frases com sentido aparente e outro oculto, jogos intraduzíveis de palavras. Péricles Eugênio fez mais de 750 notas, sem as quais a compreensão da peça em português ficaria comprometida. O problema é que não podiam ser publicadas, elas multiplicavam em quatro o número de páginas da obra e encareceria a edição. Então optou por um resumo das notas. Quem as conheceu sabe que são um telescópio para perscrutar o planeta hamletiano. Claro que o estudioso encontra tudo aquilo em tomos ingleses. Basta debruçar alguns anos sobre eles e a coisa se resolve.

Como ninguém, ainda mais o leigo, dispõe de anos para este trabalho, um bom tradutor quebra o galho. Daí a importância dele. Não é apenas verter. É colocar o leitor diante do real sentido da obra. Péricles e os irmãos Campos plantaram e colheram resultados que engrandecem a língua portuguesa. Além de tradutor, Péricles também foi poeta em São Paulo, de uma geração espremida entre dois fenômenos provocantes, o modernismo e o concretismo. Dois movimentos que para superar fortes resistências foram barulhentos e combativos – às vezes agressivos – e ganharam espaço e visibilidade notáveis. A geração de 45 ficou escondida. Os que destacaram foram por caminhada própria, como Ariano Suassuna, João Cabral de Melo Neto, Rubem Braga, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles.

Péricles Eugênio foi alguém, para o qual um epitáfio sem pompa pode ser tradução que ele fez de um poema de Keats: ‘Que Deus lhe dê paz aos ossos em algum lugar, que ele morreu faz quanto tempo, quanto!’. Ou, melhor, a tradução de Whitman, que o filme Sociedade dos Poetas Mortos imortalizou numa cena tocante: ‘Oh, Capitão! Meu Capitão eis a tremenda viagem terminada: o navio venceu todas as tempestades, alcançamos a recompensa desejada; já vejo o porto de destino, escuto a voz dos sinos, todo o povo a exultar; enquanto os olhos seguem a firme quilha, a nau austera e audaz’. Os alunos daquela turma da Cásper Líbero, naquele começo de 1980, deviam ter desconfiado. Quem traduz tão bem Walt Whitman, só podia ser um bom sujeito. E sua passagem pela vida deles não seria em vão. Não foi.