‘À Queima-Roupa’ traz sociologia da violência da PM

Protesto na abertura, denúncia na semana passada, na inauguração da Première Brasil – com À Queima-roupa, de Theresa Jeroussoun, e O Fim e os Meios, de Murilo Salles. Na grande imprensa têm pipocado casos recentes de corrupção e violência na polícia do Rio, envolvendo até mesmo a alta cúpula do Bope. A integridade do Capitão Nascimento, pelo visto, é coisa de ficção. Theresa Jeroussoun tem no currículo documentários sobre temas polêmicos como o aborto, mas é provável que ela nunca tenha se exposto tanto como agora, com À Queima-roupa.

Se o seu filme fosse uma obra aberta, ele poderia perfeitamente integrar as novas denúncias, mas, como não é, a diretora seleciona casos exemplares e isso significa viajar no tempo, até a tristemente célebre chacina de Vigário Geral em 1993. Desde então, as coisas só têm piorado. Com as UPPs, os casos de morte violenta nas comunidades foram substituídos por desaparecimentos. Estudos realizados não apenas no Brasil mostram que a polícia brasileira é a mais violenta do mundo, com o maior número de mortes de policiais e de bandidos. Nesse quadro, a polícia do Rio consegue ser a mais violenta do Brasil. Não é nada lisonjeiro.

O filme historia uma situação de guerra civil, que tem dividido a sociedade brasileira. Especialistas, na mesa de debate, ocorrida ontem à tarde, destacaram que as desigualdades sociais podem muito bem estar na origem de toda essa fenomenologia cruel. E as pessoas ultimamente têm revelado sua face mais bárbara. Pesquisas indicam que 44% dos brasileiros concordam com as mortes nas comunidades. Dentro daquele espírito de “bandido bom é bandido morto”, o caso até poderia ser explicável senão aceitável, mas o problema é que a polícia não está matando só bandidos. As maiores vítimas têm sido trabalhadores.

À Queima-roupa – o título é o mesmo do clássico de John Boorman, com Lee Marvin, nos anos 1960 – estreia no dia 16 de outubro no Rio e 3 de novembro em São Paulo. É um filme que tem de ser visto e discutido. Ultrapassa a questão estética e engloba aspectos sociológicos e ideológicos. É interessante que um festival de cinema tenha abertura para promover toda essa diversidade. Nem foi preciso esperar pela manifestação do secretário de cultura do Rio e presidente da Riocine, Sérgio Sá Leitão, sobre a situação do cinema carioca. Os artistas e técnicos que protestaram, na quarta-feira, reivindicavam “mais cinema e menos cenário”, irritando-se com o fato de que os instrumentos oficiais de financiamento no Rio estejam privilegiando só um tipo de cinema – e não é o autoral.

Murilo Salles lembrou na semana passada de uma coisa importante. Não adianta ser preconceituoso nem restritivo. O Rio, que encampou o Cinema Novo, também foi o berço da chanchada e o cinema brasileiro, segundo ele, tem se desenvolvido entre esses estandartes. Murilo, falando diante da tela, apontou para ela e disse que o cinema precisa é disso: ser visto. No filme dele, O Fim e os Meios, uma jornalista e um marqueteiro vão para Brasília na tentativa de resolver os impasses de sua relação. Ele faz a campanha de um senador corrupto e autoritário; ela, ambiciosa, faz o que é preciso para conseguir entrevistas exclusivas e manchetes para o jornal. Eventualmente, torna-se amante do político, para quem trabalha seu marido.

Não é só o casamento que implode. A situação complica-se cada vez mais com o casal se enredando em situações de ética duvidosa. Ele, sabendo ou não, forja o flagrante de um adversário do senador. Ela humilha-se para fazer com que o cara continue lhe dando atenção.

Murilo, grande diretor de fotografia, é autor de obras seminais do cinema brasileiro, como Nunca Fomos Tão Felizes e Como Nascem os Anjos. Também tem deixado sua marca em documentários de grande criatividade, mas, aqui, tirando-se certo ineditismo do tema (porque o cinema brasileiro não costuma muito falar dessa política institucional), ele deixa a desejar. Só é muito bom como diretor de atores. Marco Ricca, Cíntia Rosa e Pedro Brício estão convincentes em seus papéis.

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