A ladra

Ficou pensando na volta para casa. No ônibus cheio. De pé, ia. Segurando a bolsa com as duas mãos. A boneca dentro. Pensando. Imaginando se ele tinha imaginado. Ele, o porteiro. Se tinha desconfiado. Às vezes achava que não, besteira, dizia para si mesma. Às vezes tinha certeza, descobriu, de algum jeito sabia que ela trazia escondida na bolsa, enrolada na roupa suja, a boneca surrada, sem cabelo, de rosto pintado. A boneca surrada que faz tempo esperava escondida no fundo do armário.

Nunca tinha colocado a mão em nada que não fosse seu. Aprendeu cedo em casa. Um dia, chegou da roça com um brinquedo na mão. O brinquedo encardido de terra, nem lembrava o que era. Sujo, o brinquedo que não era dela. Descobriu o brinquedo enterrado, na roçada do Pai. O Pai deixou para trás o pedaço sujo de plástico. Ela pegou, ia andando atrás do Pai e dos irmãos. Para aprender a trabalhar na roça. Para aprender a ajudar. Chegou em casa com o brinquedo na mão. Ouviu a Mãe perguntar: Pegou onde isso, guria? Ela, menor da casa, não falava muito. Responde, donde pegou esse brinquedo? O irmão respondeu por ela: Pegou da casa do Doutor. Ela sabia que não era verdade. Nunca tinha pego da casa nada, coisa alguma. Não desmentiu o irmão. Pensou, ou nem pensar pensou, que não precisava contar a verdade. Não precisava, achava, a Mãe sabia, o Pai sabia. Só olhou a Mãe e o Pai, rindo, ainda. Quando a Mãe pegou o chinelo e começou a bater, ela entendeu que a Mãe não sabia. Nem tinha como saber. Apanhou quieta e aprendeu: nunca mais bota a mão em nada que não é teu. Aprendeu também que para esse mundo tinha vindo para apanhar.

Veio da roça para trabalhar na casa da filha do Doutor. Se desse ia prestar supletivo. Algum dia. Achava que não ia dar nunca. Chegou em Curitiba, nunca tinha visto prédio, nunca tinha visto um monte de coisa. Um monte de coisa diferente. Saiu com as meninas do prédio. Ela, muito caipira, as meninas diziam. Tome, beba, beba pra se soltar. Conheceu o Jackson, namoro que começou rápido, terminou rápido. Jenifer ficou na barriga. A patroa mandou embora quando soube que estava grávida. A gravidez inteira sem emprego. Vergonha de falar com o Pai, a Mãe. Jackson ajudava um pouco, no que dava. Ela não pedia muito, ia levando. Conseguiu levar até o nascimento. Jenifer nasceu, ia se criando como dava.

Emprego conseguiu bem depois. A menina grandinha. Achava que ia deixar na creche, nunca tinha vaga. Deixava com uma vizinha, que já cuidava das outras crianças na Vila Torres. Diarista. Queria que a filha conseguisse algo melhor dessa vida. Ela, nunca tinha feito nada errado, nunca nada ruim. Não tinha era sorte, achava. E agora achava que o porteiro do prédio sabia que ela tinha afanado a boneca, a boneca esquecida. Queria dar um presente para a filha. Ficou com vergonha de pedir. De ter que pedir. Ou de no fim ouvir não. Ouvir que nem aquela boneca velha, quebrada, suja, ela merecia. Por ter vergonha de pedir, pegou. Agora, se achava ladra, imunda. Via a cara do Pai, a Mãe. Nunca bota a mão no que não é teu! Essa menina vai dar trabalho, não sei onde aprendeu! Achava que o porteiro sabia. Sabia sim, certeza. Tinha desconfiado. Saiu rápido demais do prédio, o porteiro ia dedar. Ia perder o emprego. Por uma boneca suja que não teve coragem de pedir. A boneca que ia dar para a Jenifer.

Agora, que ela tinha certeza que o porteiro sabia, que ia perder o emprego, que ia passar necessidade, veio aquela fraqueza. O ônibus apertado demais. Precisava descer. Descer agora, perder um vale! Precisava descer, sair dali, fugir. Ela, a ladra, fugir, sair de lá. Ia perder o vale, jogar dinheiro fora, pensou na Jenifer. Não podia gastar. Logo, ia perder o emprego. Precisava de dinheiro. Pensou na Jenifer. Coitada, ela, coitada, não tem culpa! Ela, coitada, se eu não fosse perder o emprego ia ficar bem. Amanhã, olho da Rua! Justa causa, sem referência, mais difícil arranjar emprego ainda. Coitada da filhinha. Nunca tinha conseguido dar nada, nunca um brinquedo, uma boneca. Agora, pelo menos, ia dar aquela boneca velha. Não, a boneca roubada, não. Coisa roubada é coisa suja. Deu um desespero, uma certeza. Sabia: Todos olhando, olhando para ela, a ladra. Tinha que descer, desceu já no primeiro ponto.

Saiu suando do ônibus. Tirou da bolsa a boneca. Jogou ali no chão mesmo. As pessoas olharam, sabiam já, logo, logo, iam chamar a polícia. Ou as pessoas, ou o porteiro. A polícia ia achar. Ia perguntar da boneca. A patroa deu falta. Pensou, que vergonha, não aparecer na vila. Vergonha para a filha. Quando engravidou passou vergonha. A patroa antiga, a filha do Doutor mandando embora, tocando de casa. O marido defendeu: Coitada, como é que vai saber, é analfabeta de Pai e Mãe! A Mãe era analfabeta mesmo. O Pai sabia desenhar o nome. Ela sabia escrever recado. Injustiça, achou. Era assim que pensavam dela. Agora, iam pensar da menina, na Vila, as vizinhas: A menina não presta: Ladra de Pai e Mãe. Ela, a Mãe, a ladra.

Na frente uma loja. Um pouco de dinheiro no bolso. Suando, com medo. Na loja, um tempo ia ficar. Agora precisava era comprar uma boneca. O dinheiro, achava, ia dar. A boneca linda, lá, cor de rosa. Promoção, vinte reais. Era o que ainda tinha. Ia comprar. Nervosa, suando. A roupa pobre de trabalho. Ela pobre, simples, feia. A gente na loja estranhando. Pegou a boneca rápido, foi rápido para o caixa, pagou rápido. Saiu da loja, rápido! A boneca linda na bolsa. Ela, nervosa. O segurança veio: Posso ajudar? Ela quieta, agarrando a bolsa. A mão crispada na bolsa. Na bolsa a boneca comprada. Não respondeu. Ficou lá, parada. Como no dia que levou a surra do Pai e da Mãe. Quando apanhou sem ter roubado. Parada, sem responder.

O segurança falando, mais seguranças. A bolsa arrancada da mão. Não queria largar o presente da Jenifer. Ouviu longe: Olhe, tá aqui, sabia, tava saindo sem pagar! A boneca na mão do segurança. Ela, sem falar nada. A boneca voltando para a prateleira. O presente indo embora. Chamo a polícia? Deixe, nem adianta, eles já conhecem, soltam já. Manda embora da loja que já levou um susto, essa ladra! Empurraram para fora. Na rua, as pessoas vendo. As pessoas que já sabiam, agora tinham certeza. A ladra. Pisou na boneca velha, na primeira, na roubada do armário. Ainda na calçada, ninguém pegou. Ninguém quis. Pegou, colocou na bolsa. Agora, pouco importava. Pegou a Jenifer chorando na casa da vizinha. A menininha, os olhões arregalados. Dia seguinte, demorou para chegar no serviço. A patroa deu bom dia. Perguntou do atraso. Como se nada tivesse acontecido.

Aristides Athayde

é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce
aristides@aristidesathayde.com.br 

Voltar ao topo