Brasil é o país do edentulismo

Aquela velha idéia de que a maior parte das pessoas está fadada a perder seus dentes um dia e que a prótese total (vulgo dentadura) será uma realidade na vida de todo mundo, segundo especialistas, está totalmente equivocada. O que acontece é que o Brasil, culturalmente, está de certa forma acostumado ao edentulismo – leia-se perda dos dentes por fatores como cáries ou doenças de gengiva – e, erroneamente, costuma associá-lo à idade. 

Mesmo no século XXI, com recursos odontológicos e o flúor presente na água e nos produtos de higiene mais acessíveis, o País ainda não conseguiu tirar essa verdadeira ?epidemia? de circulação, tornando-a um de nossos mais sérios problemas de saúde pública. A preocupação com o edentulismo faz sentido e ficou mais evidente depois que, em 2003, foram computados os dados do último SB Brasil, estudo que mostrou as condições de saúde bucal da população.

A pesquisa englobou quase 109 mil pessoas em 250 cidades, incluindo todas as capitais. ?Os resultados nos surpreenderam porque esperávamos muito edentulismo nas populações sem acesso. No entanto, encontramos até mesmo adolescentes que vivem nas regiões metropolitanas edêntulos?, relata o professor Samuel Jorge Moyses, do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).

Os dados mostraram, por exemplo, que cerca de 60% da população entre 35 e 44 anos e quase 3% dos brasileiros entre 15 e 19 anos usam algum tipo de prótese (removível, fixa ou total). ?Isso no País que mais faculdades de odontologia tem no mundo?, equipara o professor. São cerca de 190 cursos Brasil afora e o maior número de dentistas per capita (cerca de 220 mil profissionais formados em todo o País). ?O problema é que talvez essa formação ainda esteja voltada para a atividade privada, o atendimento de consultório. Só agora começa a despertar interesse dos gestores públicos a necessidade de formar o profissional sob a ótica da atividade como política pública?, explana Moyses.

Sem acesso

Mesmo sendo evitável pela prevenção, e remediável, por meio das próteses, é preciso lembrar que a maior parte das pessoas que perde os dentes não consegue repô-los. Entre os adolescentes, por exemplo, cerca de 9% precisam de algum tipo de prótese superior e outros 23%, de inferior, e não as têm. Já os idosos são os que mais sofrem: 32% deles necessitam de próteses na arcada superior e outros 56%, na inferior. O Sul, dentre as regiões do Brasil, apresenta os indicadores menos piores (entre os idosos, os índices caem para 19,5% e 46%), mas, mesmo assim, indesejáveis. ?Não é normal perder dentes. Eles estão associados não só à alimentação e sobrevivência, mas também à sociabilidade, à linguagem, ao erotismo. Precisamos deixar de ver isso como um fatalismo e perceber a seriedade que existe nesses índices?, diz Moyses.

Açúcar e status social são os vilões

A evolução da cárie no mundo está diretamente associada ao consumo de açúcar, especialmente o refinado. O número de pessoas atingidas disparou nos idos do século XIX, coincidentemente quando esse alimento deixou de ser uma especiaria cara, consumida pela nobreza, e passou a ser disponibilizado a preços mais acessíveis às grandes massas. Foi justamente nessa fase (1840) que surgiu a primeira escola de odontologia, nos Estados Unidos.

Hoje, em boa parte do mundo, a perda de dentes por esse fator e também pelas doenças periodontais (de gengiva) acontecem com freqüência e mostram que o edentulismo também é sinal de falta de cuidados ou de acesso aos produtos básicos de higiene.

No Brasil, atinge pessoas com perfil de baixo poder aquisitivo, moradores do meio rural (apesar de o urbano ser cada vez mais acometido), negros ou pardos e, curiosamente, mulheres. O pesquisador Marco Aurélio Peres, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), afirma que o dado chama atenção porque são elas, justamente, que mais procuram serviços de saúde. ?Não sabemos exatamente por que, mas uma hipótese é devido à prática de trinta anos atrás ser mais intervencionista que preventiva. E na odontologia, uma vez feita a intervenção, terá de ser feita de novo, o que leva a um ciclo vicioso e à conseqüente perda.? Mas para ele, apesar de o quadro ainda assustar, o Brasil mostra avanços. ?Em 1986, o País foi considerado um dos campeões de cáries do mundo. Em 2002, tivemos redução de 50% da doença.?

Já o Paraná tem indicativos positivos com relação aos cuidados da saúde bucal. Curitiba, por exemplo, foi a primeira capital a fluoretar a água de abastecimento, em 1958 (no restante do País, isso só atingiu fatia considerável da população na década de 80). A capital tem hoje um dos menores índices de cáries do País (1,3 por habitante), enquanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) preconizava um indice máximo de 3 para o Brasil no ano 2000. O Paraná foi um dos únicos estados a implementar o enxagüante bucal nas escolas públicas, além de fornecer educação em saúde bucal e orientação dietética aos estudantes.

Atualmente, o Estado possui Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs) que realizam procedimentos de média complexidade. O encaminhamento é feito pelas unidades de saúde dos bairros quando o problema do paciente é específico e não pode ser resolvido pelo dentista local. São atendidas pessoas como o carregador Luís Darci Moreira, que conseguiu uma prótese total depois de anos de sofrimento. O primeiro dente arrancado foi aos 15 anos. ?Agora, é vida nova. Vou poder morder um pouco mais?, diz, bem-humorado. Depois do que passou, ele aconselha: ?Cuide bem dos seus dentinhos. Ah, se eu tivesse cuidado dos meus antigamente…?, lamenta, mas, agora, sorridente. (LM)

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