Abruzzo: entre a fé e o folclore

Entre todas as épocas da milenária história do Abruzzo, a Idade Média foi a que deixou no território as marcas mais evidentes e espetaculares, capaz de imprimir-se para sempre nos olhos e no coração dos visitantes: igrejas medievais no centro de solitários planaltos, ermos escondidos nas encostas das montanhas, imponentes abadias e grandes estradas pavimentadas com pedras.

As suas solenes paisagens favoreceram a aproximação aos mistérios da fé. Nas suas grutas e profundos precipícios, onde surgiam nascentes de água, foram edificadas ermidas de rara beleza e muitas vezes de difícil acesso. De fato, se Abruzzo é considerada uma região da natureza mais rica do país, é também evidente uma região de profunda espiritualidade. Nestes lugares de romaria meditaram longamente anacoretas desconhecidos e ilustres como o Papa Celestino V que se retirou nos ermos de Santo Espírito, São Bartolomeu e muito outros situados no monte Porrara.

A fé que invade a alma do povo abruzes se exprime também nos inúmeros e esplêndidos santuários, metas de contínuas peregrinações religiosas, sem contar as diversas igrejas rupestres como os ermos de Santo Angelo em Palombara e Civitella del Tronto.

Patrimônio peculiar

Os quase cem ermos que a região abriga no âmago das suas montanhas constituem o seu patrimônio mais peculiar e específico. No panorama de grande riqueza de bens culturais, presente em todas as regiões italianas, um testemunho assim imponente da experiência religiosa eremítica pertence de fato somente ao Abruzzo.

Mas como compreender e explicar o surgimento neste apenino, de ermos assim numerosos e incrivelmente sugestivos? O poeta abruzes Ignazio Zilone não tinha dúvidas e afirmava que somente compreendendo o papel determinante desenvolvido pelo ambiente geográfico pode-se condicionar o modo de vida e a expressão cultural deste povo.

Aqueles que desejarem aventurar-se na descoberta destes lugares fantásticos e silenciosos se conscientizarão, já ao primeiro contato, do sentido de extraordinária sacralidade da natureza que emana dos ermos do Abruzzo, surgidos em grande parte em lugares sagrados e ligados a cultos precedentes, muitas vezes de origem pré-histórica.

É evidente que o maciço da Maiella aparece particularmente predisposto a este gênero de ensediamento. A existência de despenhadeiros , mesmo escondendo algumas paisagens, permitem aos eremitas uma vida espiritual sem a necessidade de separar a comunidade monástica do contexto civil. Estes lugares, na realidade transformados em pequenos “oásis de silêncio” foram escolhidos para moradia de diversas pessoas.

Na metade do século XI Desiderio, eleito Papa em 1086 com o nome de Vitório III, permaneceu diversos meses com os eremitas da Maiella, atraído pelos hábitos de espiritualidade e recolhimento que esses tinham já há séculos. Quando Pietro da Morrene, futuro Papa Celestino V, chegou à região iniciou uma longa obra de reconstrução dos numerosos lugares de culto, abandonados e quase reduzidos a ruínas.

Busca da solidão

Segundo o Monsenhor Roberto Miccoli, reitor da Abadia de San Liberatore de Serramonacesca e do Santuário do “Volto Santo” em Manopello, a decisão de refugiar-se em uma vida de silêncio e meditação é fruto de uma escolha interior.

“A qualquer pessoa”, afirma, “independentemente da sua religião ou fé, pode apresentar-se este momento, quando uma voz interior lhe indica o caminho a seguir. E esta voz é tão imperiosa, que se torna quase impossível não ouvi-la ou segui-la. Muitos se realizam no sacerdócio ou em atividades missionárias e assistenciais, outras, no entanto, necessitam da mais profunda solidão para alcançar a beatitude”, confirma o religioso.

Para São Francisco de Assis, o corpo era o ermo e a alma era o eremita, palavras particularmente adequadas para definir Pietro da Morrone, famoso por ter renunciado ao papado e preferido continuar na sua estrada solitária de eremita. São numerosos os testemunhos que recordam as suas fugas de um ermo a outro, na contínua busca de uma maior solidão, refugiando-se em lugares cada vez mais inacessíveis, mas sempre seguidos por uma multidão de devotos atraídos pela sua fama de santidade.

Apesar da difícil localização, estes lugares contraditoriamente eram situados em zonas bastante freqüentadas por pastores e camponeses. As ruínas de um velho monastério no vale de Roccamorice, por exemplo, foi um núcleo de devoção ao Espírito Santo e de onde se iniciou a obra de reconstrução de outros lugares sagrados e abandonados.

Ligação especial

Na opinião de Dom Roberto existe uma ligação especial entre a Abadia de San Liberatore e o ambiente onde é inserida: “Compreender este ambiente, percorrendo as margens da nascente do rio Alento, é como aventurar-se em um percurso entre eventos históricos já conhecidos e outros ainda por descobrir. Partimos do rio e descobrimos que a água, fonte de vida da Maiella, foi explorada pelos beneditinos desde o início. Os monges a transportavam, através de uma longa canalização, até a fonte situada no interior do monastério e na sua proximidade foi construído um dos primeiros moinhos da região”.

Situada nas encostas da Maiella, San Liberatore é uma das mais antigas abadias beneditinas e sua origem, legendariamente ligada à figura de Carlos Magno, remete ao ano de 781. No entanto, é apenas em 884 que aparece oficialmente em um inventário dos bens beneditinos. A primitiva edificação foi destruída pelo terremoto de 990, mas em 1007 foi iniciada a reconstrução da igreja e do monastério sob a direção do monge Teobaldo, que vinha diretamente de Montecassino para supervisionar o trabalho.

Nos séculos XI e XII, a Abadia alcançou o ápice do seu esplendor com a conclusão da construção do pavimento em mosaico, tornando-se em pouco tempo um grande centro espiritual. A partir do século XIV, a abadia tornou-se objeto de numerosas reivindicações por parte dos príncipes das regiões limítrofes, determinando o progressivo abandono que culminou em 1806 com a extinção de algumas ordens monásticas. Os beneditinos foram obrigados a abandonar definitivamente o monastério, de onde foram retiradas suas obras de arte, livros e ornamentos sacros , o teto trabalhado foi retirado e vendido.

Com a primeira restauração feita em 1968, o que foi possível recuperar foi reportado à sede original, como o pavimento em mosaico (único em seu gênero em todo o Abruzzo), a porta principal e alguns ornamentos. Em 1996 foi necessária a realização de diversos trabalhos de conservação do edifício que se apresenta hoje mutilado de suas partes essenciais. No monastério, atualmente, é visível apenas uma pequena parte no muro à esquerda da fachada.

Ermo de Santo Onofrio

Em uma zona tranqüila e solitária, distante aproximadamente quatro quilômetros de Serramonacesca, o ermo de Santo Onofrio foi edificado em uma gruta circundada por uma rica vegetação. A parte final do percurso deve ser feito a pé e a estrada que sobe até 700 metros de altura oferece ao peregrino um espetáculo de grande efeito.

Uma antiga tradição narra que um eremita chamado Onofrio, filho do rei Teodosio da Pérsia, escolheu este lugar para viver em penitencia. Depois da sua morte ele foi beatificado e no altar da capela encontra-se uma sua estátua com o corpo coberto apenas por seus longuíssimos cabelos e barba, com um rosário nas mãos e o olhar em direção ao céu. Esta descrição foi feita por São Panunzio, que o encontrou depois de 40 anos de extrema solidão.

Na falta de informações corretas para a precisa de datas, presume-se que o ermo foi edificado em um arco de tempo que abrange o XI e o XIV séculos, época florescente da abadia de San Liberatore e de toda a vida religiosa da Maiella. Sua presença, não muito distante daquela abadia, fez de Santo Onofrio um lugar de retiro espiritual para os religiosos do convento, ao menos nos primeiros tempos. Atualmente, aproveitando o fluxo de passantes pela via de acesso, foi transformada numa granja.

O ermo é ainda hoje bastante freqüentado principalmente no dia 12 de junho, quando numerosos fiéis provenientes das localidades vizinhas buscam o santuário e não é raro ver alguns deitados em uma pequena cavidade dentro da capela, denominada “berço de Santo Onofrio” para curar dores lombares, renais e febres persistentes, segundo o antigo ritual da litoterapia. Ao lado do “berço” são ainda bem visíveis as impressões deixadas pelo santo no lugar onde se ajoelhava para rezar.

Maiella tem monastérios clandestinos

Eunice Ataide

O monastério de Santo Espírito é, sem dúvida, um dos mais complexos e famosos de toda a Maiella, além de ser o mais rico de história e tradição. Apesar das inúmeras transformações sofridas nos últimos mil anos, conserva ainda todo o seu fascínio devido à admirável posição ocupada no vale batizado com seu o nome, bem como à atmosfera de mistério que o circunda.

Como todos os outros ermos da região, não existe uma data definida de sua origem. A primeira presença famosa foi a de Desidério, o futuro papa Vittore III que, em 1053, ali viveu juntamente com alguns eremitas, construindo no local uma pequena igreja. No século seguinte sofreu um período de abandono, vistas as condições que Pietro da Morrone encontrou na metade do século XIII. Entre altos e baixos a abadia foi completamente abandonada em 1807, com a suspensão das comunidades monásticas e as inúmeras tentativas realizadas posteriormente para mantê-la tiveram escasso resultado.

Muitas são as lendas ligadas a esse lugar de culto, particularmente relacionada com Pietro da Morrone. São histórias de diabos, de sacrilégios e de extremas punições, todas ligadas à figura do santo eremita. Antigamente numerosos grupos de peregrinos visitavam o lugar seguindo o íngreme caminho da montanha, mas hoje nota-se apenas uma discreta participação de devotos na abertura da “Perdonanza”, no dia 29 de agosto.

Ao deixar esse monastério, o eremita dirigiu-se ao ermo de São Bartolomeu, edificado na mesma época. Segundo os historiadores, o futuro Celestino V estabeleceu-se nesse lugar com alguns fiéis, provavelmente em 1276. Mas pela sua extrema proximidade com alguns centros habitados e o excessivo distúrbio provocado pelas freqüentes visitas de peregrinos, preferiu transferir-se posteriormente a San Giovanni d?Orfento, lugar de difícil acesso.

Esse ermo se desenvolveu sob um enorme teto de rocha com aproximadamente 50 metros de comprimento, sendo ainda hoje muito freqüentado, principalmente no dia 25 de agosto. Durante a procissão os fiéis percorrem antigos caminhos na rocha carregando nos braços uma pequena estátua do santo, passando-o entre si e são freqüentes as brigas e discussões para garantir essa honra. A estátua representa o santo com sua própria pele no ombro esquerdo e uma faca na mão direita, já que, segundo a tradição, São Bartolomeu foi martirizado dessa maneira no Oriente.

Os fiéis recolhem a água santa que jorra no interior da igreja, considerada a última esperança aos moribundos e milagrosa para as doenças infantis, além de ter sido usado antigamente como eficaz remédio contra as pragas das videiras.

Tradição religiosa

Uma civilização que vive junto à natureza e que possui uma história profundamente ligada a ela só poderia conservar uma tradição religiosa rica de lendários aspectos. Histórias muitas vezes relacionada aos elementos de uma antiga cultura pagã, objeto de exaustivas pesquisas por parte de estudiosos do folclore e da cultura popular.

Bastante conhecida é a “Sagra delle panicelle”, realizada em Taranta Peligna no dia 3 de fevereiro e dedicada a São Biagio, santo invocado para curar dores de garganta. As “panicelle” são pequenos pães em forma de quatro dedos unidos, distribuídos depois das funções religiosas como auspicio de concórdia e de paz.

Dedicadas ao culto de Santo Antonio Abade, são realizadas representações em diversas localidades no dia 17 de janeiro, quando a população recorda com cenários coloridos as diversas tentações sofridas por esse eremita do deserto. Esse santo é também cultuado em Cocullo, onde a sua estátua é levada em procissão na primeira quinta-feira de maio, completamente coberta com serpentes vivas.

De profunda tradição é a Via Crucis da Sexta-Feira Santa que percorre as ruas de Chiete, cantada somente por homens e acompanhada com um coro de violinos. Curiosas são também as procissões realizadas em diversas localidades onde a água é escassa, quando os fiéis colocam um peixe salgado na boca do santo local, invocando assim a sua misericórdia e implorando que faça chover em abundância.

Tudo isso sem contar o fascínio e a importância histórica da “Perdonanza Celestiana” de Aquila, único jubileu celebrado fora de Roma, com o qual o papa Celestino V, no século XII, concedeu o perdão a todos os pecadores, mesmo aos mais pobres que não podiam na época obter a indulgência.

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