Doença, bioética e reação racial

Os médicos do Centro Médico da Universidade do Sul da Califórnia no Condado de Los Angeles viram confirmada a perplexidade quando uma enquete (*) veio à luz a respeito do que efetivamente as pessoas que entendem inglês retransmitem a seus parentes pacientes que não entendem a língua. "Um médico pode falar durante cinco minutos e o tradutor promover uma supersimplificação de apenas duas frases", nas palavras da especialista em bioética Leslie J. Blackall.

Cada grupo étnico tem sua interpretação a respeito do valor da "cadeia de transmissão da verdade" e sobre o papel que os parentes irão assumir no caso das doenças mais graves. A pesquisa, envolvendo 200 pacientes com 65 ou mais anos e quatro grupos étnicos, apontou que os americanos (descendentes de) coreanos e mexicanos são os mais aplicados em "filtrar" as informações médicas em comparação com os americanos descendentes de negros e europeus, que se inclinam mais na direção da realidade crua e nua, mesmo quando o diagnóstico aponta para doenças mais graves e desgastantes como o câncer. Dito em outras palavras, as duas primeiras comunidades optam pela postura "protetora" enquanto as duas últimas respeitam o atual entendimento bioético de que o paciente tem o direito de saber tudo o que diz respeito à sua saúde e chances de sobrevivência.

Nesta pesquisa os parâmetros medidos foram os casos de câncer em metástase, câncer em estágio terminal e o entendimento do paciente em concordar com a aplicação de tecnologias médicas para garantir o suporte de vida (tempo de sobrevida). Na defesa do poder decisório de família, os descendentes de coreanos (seguidos de perto pelos mexicanos) foram os mais radicais, já que a maioria prefere que apenas a família tenha o conhecimento pleno da gravidade da doença. Interessantemente, este ponto de vista é ditado exclusivamente pela etnicidade e não pela idade, sexo, classe social ou grau de educação. Chama igualmente a atenção que, no caso de mexicanos e seus descendentes, o progressivo processo de aculturação dentro do território norte-americano tem um efeito positivo, pois a porcentagem de opinião favorável a se contar ao paciente a verdade sobre seu estado de saúde sobe de 60% para 83%. Muitos entrevistados alimentam a convicção de que um paciente plenamente informado a respeito da gravidade de sua doença tende a morrer mais cedo.

Desde 1991, é da prática norte-americana que os hospitais e assemelhados, por força de lei federal, providenciem em favor dos pacientes adultos informação escrita a respeito da gravidade de enfermidade, a fim de que os mesmos possam expressar seus pontos de vista e adotar futuros cuidados, tendo em vista que futuramente possam estar impedidos de fazê-lo. A informação não inclui excessivo detalhamento, posto que o objetivo é basicamente obter a concordância ou não para o tratamento médico indicado. Nem cabe ao parente, por interpretação própria, contrariar a decisão acordada entre o médico e paciente.

O difícil é então atingir um equilíbrio entre o que a cultura médica norte-americana privilegia entre autonomia de paciente e o que determinadas culturas imigrantes cultivam como unidade familiar de decisão. Nisto reside a dificuldade de balanço para o melhor exercício da responsabilidade médica.

O valor da pesquisa antes referida, longe de estereotipar grupos étnicos (no caso, os 4 grupos selecionados não foram ocasionais, mas simplesmente porque são os pacientes que com mais freqüência buscam ajuda médica no Hospital da USC) se presta a dois avanços: melhor compreensão das bases culturais que integram a usual homogeneidade de uma nação e subsidiar os médicos em sua difícil tarefa de melhor formular a linguagem de expressão de diagnóstico e então administrar os desdobramentos em favor do paciente e seus familiares.

(*) Journal of American Medical Association, September 13, 2005; M. Sullivan, 1995

José Domingos Fontana (jfontana@ufpr.br) é professor emérito da UFPR junto ao Departamento de Farmácia, 11.º prêmio paranaense em C&T e pesquisador 1A do CNPq. 

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