Celulose 1 – algodão em alta

O mais comum açúcar da natureza, a glucose, pouco aparece como tal ou seja como unidade livre (metade das fórmulas da Fig. 1). Suas formas mais freqüentes de ocorrência são os polímeros celulose, material fibroso de sustentação das plantas e amido, polissacarídio de reserva da maioria dos vegetais. Celulose e amido são em termos químicos simples a mesma substância, ou seja, homopolímeros de unidades de glucose.

A grande diferença é que a unidade funcional de ambos não é unitária mas binária. Cada duas glucoses alfa-unidas no amido formam uma maltose (com menor freqüência uma outra variante, a isomaltose) enquanto que o enlace beta-covalente corresponde na celulose é a celobiose. A Física das pontes de hidrogênio se encarrega do resto. As cadeias polissacarídicas do amido se helicoidizam e absorvem muita água para formar géis enquanto as cadeias de celulose são mais intimamente entre si ligadas e daí a formação de fibras completamente insolúveis em água embora hidratáveis (Fig. 2).

Ainda hoje sobrevivem no pré-deserto peruano as ocorrências naturais de algodão nas cores branca, bege, malva, chocolate e marrom, cuidadosamente preservadas pelos índios da etnia Mochica na costa norte do Peru. No idioma Inca, o algodão marrom é conhecido como “Pakucho”. É uma visão que já havia maravilhado os impiedosos conquistadores espanhóis na terceira década dos anos 1.500s. Trata-se de variedades de Gossypium barbadense, ou algodão de fibras longas. Mais na direção da América Central e Caribe popularizou-se a espécie mais banal e de fibras curtas, G. hirsutum. Outras espécies de algodão, G. herbaceum e G. arboreum também são nativas da América ou África.

Embora o algodão branco tenha se destacado na indústria têxtil nas últimas décadas, o curto suprimento de corantes durante a 2.ª. Guerra Mundial obrigou os russos a cultivarem e industrializarem algumas variantes de algodões coloridos, o que foi, em menor escala, “copiado” pelos norte-americanos através do trabalho de espionagem industrial do agrônomo J.O.Ware. Agora em tempos de globalização em que o discurso das ONGs ambientais prevalece sobre os males da deterioração ambiental por conta dos corantes sintéticos, o algodão naturalmente colorido começa a readquirir a importância já sabida pelos incas, maias e astecas. Nos USA, na década de 80, uma aplicada estudante com Mestrado em Entomologia e em MIP Manejo Integrado de Pragas, Sally Fox, avessa ao intenso uso de pesticidas que normalmente são empregados na cotonicultura, obteve num depósito do USDA (Depto. de Agricultura dos USA) algumas sementes de algodão marrom e disparou cruzamentos criando variedades coloridas de algodões de fibra longa (que é muito mais facilmente processada nos teares) coletivamente designadas de FoxFiber e comercializadas, desde 1989, pela Natural Cotton Colors Inc., de Vickenburg, Estado de Arizona, USA. Jornalistas latino-americanos, sabedores que o USPTO concedera patente em favor de Sally, protestaram e localizaram o ato de colheita de germoplasma de algodão colorido peruano ou mexicano por parte do pesquisador do USDA, Gus Hyer. Alegado razoável daqueles que promovem tal “jus sperneandi” : biopirataria, com prejuízos para os indígenas latino-americanos. Um especialista da Universidade de Texas A&M estimou que o Kg de algodão colorido oscile entre US$ 2 e 5 enquanto o algodão branco se situe em apenas US$ 1,2 / kg.

Grandes conglomerados biotecnonólogicos transnacionais (Calgene e Agracetus) perseguem, via Biologia Molecular, a obtenção de um clone de algodão azul. Traria mais um ciclo de revolução industrial para a bilionária indústria têxtil de jeans. No Brasil o cultivo de algodão colorido, que tem em Campina Grande, Paraíba seu pólo mais notável, é conseqüência de pesquisa que a EMBRAPA vem conduzindo há mais de um lustro. Para o algodão convencional um levantamento da CONAB/2004 aponta um crescimento de 45% na área plantada, ultrapassando portanto mais de 1 milhão de ha plantados e uma colheita pouco acima de 1,2 milhões de ton. MT é o Estado-líder, seguido da BA, GO. O PR, campeão nacional na década de 90, colheu acanhadas 30 mil toneladas em 2003. Detém tecnologia para voltar aos áureos tempos mas tampouco pode ser o celeiro de todos agribusinesses nacional. No País os cotonicultores intensificam a pressão em favor da liberação de algodão transgênico pois afinal é um agronegócio recordista no consumo de pesticidas. De longa data, Bt-cotton já estabeleceu seu lugar. Bt refere-se ao gen da toxina da bactéria Bacillus thuringiensis, já inserido no genoma do algodão nativo. Da variedade transgênica “Bollgard” (para variar biotecnologicamente também criada pela Monsanto, “mãe” da soja transgênica RR) em 2002 foram plantados 4 milhões de ha mundo afora. A EMBRAPA ensaia sua variedade própria de algodão-Bt e também de algodão-S (de Streptomyces, um actinomiceto geralmente produtor de antibiótico). Em setembro/2004 a EMBRAPA anunciou ainda sua intenção de clonar gen(s) de aranha no algodoeiro. Objetivo: fibra super-reforçada para usos “incrementados” da indústria têxtil e outras (militar ?). Vale lembrar que o fio da teia de aranha é 100% proteína (mescla de fibroina + sericina) e portanto, do ponto de vista químico, totalmente diferente da celulose, homopolímero de açúcar. Aliás, a celulose, diferentemente do amido, das próprias proteínas e das gorduras, mais promíscuas, é um ente natural algo vestal pois não se associa quimicamente com outras moléculas, exceto por um “namoro sinergístico” com xiloglucanas. Não há dúvida de que os pesquisadores chegarão a bom termo na clonagem pretendida. Resta-me a dúvida se o neo-algodão não irá, abortivamente, “administrar” a produção dos dois produtos gênicos, a celulose nativa e o “pseudo-Kevlar clonado”, por separado.

Como tecnologia é a ciência escrita especialmente para os negócios, refluo para a frase de início: um competidor de matéria-prima para o algodão colorido e cumulativamente orgânico é o Ingeo Denim (da Santista): 25% da fibra é feita com … amido de milho! No próximo artigo (Celulose-2), abordarei uma forma mais eclética de celulose, a produzida por bactérias.

José Domingos Fontana é o 11.º Prêmio Paranaense em C&T (1996), Pesquisador 1.ª do CNPq e Docente Sênior na UFPR orientando Mestrado e Doutorado nos Deptos. de Farmácia e Bioquímica/Biologia Molecular.

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