As variadas facetas da maconha

figura2300706_1.jpgÉ relativamente recente (1980) a descoberta e descrição dos receptores canabinóides, ditos CB1 e CB2. A presença está confirmada em mamíferos, aves, peixes e répteis. Os primeiros são encontrados principalmente no cérebro ao nível dos gânglios basais (envolvidos nos movimentos de coordenação do corpo) e no sistema límbico (hipocampo; região responsável pela aprendizagem, memória e resposta ao estresse) mas também no cerebelo e sistemas reprodutivos. Não criam risco de falha respiratória ou cardiovascular pois estão ausentes da medula oblongata, a parte do cérebro responsável por estas funções vitais. Aos receptores CB1 (quando estimulados pelos ligandos, dentre os quais os bioativos da maconha) são atribuídos os efeitos eufórico e anticonvulsivo.

Já os receptores CB2 são encontrados exclusivamente no sistema imune e com maior densidade no baço. A eles se atribui o efeito anti-inflamatório e outros possíveis efeitos terapêuticos da maconha. Tais receptores são âncoras para um grupo de substâncias designadas de canabinóides e que compõem 3 classes: a) os vegetais, como o THC (9-delta-tetrahidrocannabinol dominante na maconha ou Cannabis); b) os endógenos naturais como anandamida ou araquidonil-etanolamina e araquidonil-2-glicerol (produzidos pelo corpo humano a partir de lipídios poli-insaturados) e c) os sintéticos como a Nabilone (um anti-emético produzido pela indústaria farmacêutica). Os receptores canabinóides, inseridos na membrana plasmática, estão acoplados a duas importantes entidades protéicas: às proteínas-G (transdutoras de sinais) e à enzima adenilato-ciclase (que biossintetiza o cAMP, um 2.º mensageiro da ação hormonal). Um efeito de base, quando o ligando (e.g., THC) se une ao receptor CB, é a alteração do equilíbrio de íons-chave intracelulares tais como potássio (K+) e cálcio (Ca2+) e seus canais.

figura3300706.jpgCannabis (cânhamo-da-Índia e haxixe, termo este mais aplicado à resina obtida do vegetal) é um arbusto dióico (plantas-macho e fêmea individualizadas) da família das Moráceas e a fitoquímica indica que se trata de uma planta assaz complexa com mais de 400 constituintes mais de meia centena dos quais são canabinóides ou terpenofenóis. Os dominantes são 9-delta-tetrahidrocannabinol (THC), seu análogo propil, cannabidiol, cannabinol, cannabichromeno e cannabigerol. Há quatro subespécies de maconha: Cannabis sativa sativa, C.s. indica, C.s.rasta e C.s.ruderalis. No fígado humano o composto nativo (-9-THC é convertido numa forma ainda mais psicoativa, o 11-hidroxi-THC. A tática dos cultivadores é suprimir as árvores-macho o que leva obtenção de plantas-fêmea sinsemilla (sem sementes) cujo conteúdo em canabinóides é mais elevado (folhas e flores).

O uso medicinal mais freqüente da maconha é como estimulante do apetite, aliviadora da dor e bloqueadora das náuseas para pacientes terminais de câncer e Aids. Também aplicada para alívio do glaucoma (pressão intraocular) e certos distúrbios neurológicos como epilepsia, enxaqueca e desordem bipolar. Alguns efeitos colaterais podem acompanhar os efeitos terapêuticos citados acima, tais como, alterações na cognição e memória, euforia, depressão, efeito sedativo e outros. Alguns compostos canabinóides modificados chegam a apresentar um potencial analgésico cerca de 6000 vezes superior ao da morfina {Kuntz, M. J.; Pain 1986, 27, 30}.

As preparações farmacêuticas são o dronabinol (Marinol; 9-THC puro e não a panacéia presente na planta), Nabilone ou Cesamet (anti-emético liberado na Inglaterra) e Sativex (gotas sublinguais do extrato da planta toda), este lançado no Canadá para o caso específico de esclerose múltipla e já adotado também no Reino Unido e Espanha. Há 11 estados norte-americanos que, via leis, permitem a posse e o consumo de maconha ou seus derivados para fins médicos. Pesquisas também mostram que a Cannabis não causa dependência física (caso da cocaína, heroína, cafeína e nicotina) e que a suspensão do uso não causa síndrome de abstinência (caso do álcool e da heroína). Seu uso prolongado em certas circunstâncias causa dependência psicológica, e pode levar ao consumo de outras drogas. Por se tratar de uma droga psicotrópica e alucinogênica, o uso indiscriminado da maconha é tido como perigoso {Petersen, R. C.; Marijuana Research Findings, Maryland, Department of Health and Human Services, 1980}. O uso de bioativos derivados da maconha (seja na forma de drogas sintéticas seja no forma de extratos da planta como tinturas) é objeto de interesse médico e portanto socialmente aceitável para algumas doenças enquanto que o consumo indiscriminado, fumando a erva, é sem dúvida condenável até por conta das centenas de outras substâncias tóxicas (incluído o alcatrão cancerígeno que envenena também como no tabaco).

O campo de pesquisa com bioativos de Cannabis é uma página em aberto. O pesquisador brasileiro Yehoshua Maor, operando na Universidade Hebraica de Jerusalém, tem explorado (2006), com sucesso, uma versão quimicamente modificada do cannabigerol (DMH), no controle da hipertensão arterial. Não foi detectado qualquer efeito psicotrópico secundário ou seja, o dito ?barato?. Maor teve como orientador de mestrado e doutorado o Prof. Raphael Mechoulam, exatamente o pesquisador que descobriu o THC em Cannabis.

Maconha é um tema permanentemente polêmico. A imprensa nacional recentemente noticiou que um grupo de personalidades nacionais (o psiquiatra Dartiu Xavier, o farmacologista Elisaldo Carlini, a psicóloga Lídia Aratangy, o jurista Miguel Reale Jr., o sociólogo Rubens Adorno e o antropólogo Edward McRae) deverá apresentar um protesto público contra a visão ?demonizadora? da maconha que é apresentada pela ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria). Por outro lado, um relatório da UNODC – Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime informa que, pela primeira vez nos últimos 15 anos, e em que pese o aumento do consumo mundial, o número de crianças e jovens brasileiros (estudantes) entre 10 e 18 anos que fumam maconha está em decréscimo: eram 6,4 % (2004) em comparação com os 7,6% de 1997.

José Domingos Fontana (jfontana@ufpr.br) é professor emérito da UFPR junto ao Departamento de Farmácia, pesquisador do CNPq e prêmio paranaense em C&T. 

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