Histórias cravadas na pela por meio das tatuagens

Apesar de já terem sido consideradas sinônimo de rebeldia ou mesmo de criminalidade, sendo, inclusive, uma forma de identificação de presos, já faz muito tempo que a sociedade passa por um processo de eliminação do preconceito em relação às tatuagens. Os desenhos deixaram de estar associados somente a minorias e passaram a ser considerados moda, arte. É um mercado muito grande, que continua em fase de expansão.

E as mulheres, é claro, não podiam ficar de fora dele. Muitas já passaram da fase das estrelinhas, coraçõezinhos delicados e tatuagens com o nome do filho, e avançaram para desenhos maiores. Quase todos têm grande significado na vida delas e foram escolhidos para ficar ali, para sempre, justamente para serem lembrados. A funcionária pública Fernanda Pacheco Pereira, 31 anos, por exemplo, tem sete. A primeira foi clássica: estrelinhas atrás da orelha. Mas, apesar de simples, foi uma tatuagem muito esperada. “Eu trabalhava em uma imobiliária onde o chefe rasgava currículo de quem tinha tatuagem, mas sempre tive vontade. Assim que fiz 22 anos, passei no concurso público e uma das primeiras coisas que eu fiz foi a tatuagem e colocar um piercing”, conta.

Com o passar dos anos, ela fez estrelas no pé, flores no ombro, uma carpa no braço, o nome do filho no antebraço, um dragão nas costas, e mais uma estrelinha no pulso. A última foi só para ficar com um número ímpar de tatuagens. Não se sabe de onde surgiu essa história de que ter número par não dá muita sorte, mas quase todo mundo que tem tatuagem conhece esse “ditado popular” e se preocupa com isso.

O dragão foi o mais difícil. Como a tatuagem era muito grande, ela fez o contorno e só depois de um ano juntando dinheiro, conseguiu pintar. Fernanda sempre achou dragões bonitos e queria ter um. De acordo com ela, o desenho da carpa subindo significa que ela ainda não alcançou seus objetivos. As flores, sakuras (ou flores de cerejeira) lembram algo da filosofia samurai, de que deve-se viver o hoje. Essa é a filosofia de vida dela. Futuramente, ela ainda pretende refazer o dragão e tatuar uma fênix na perna.

A prova de que o preconceito foi superado veio de dentro de casa. O pai dela falava que tatuagem era coisa de marginal, mas hoje ele e a esposa tatuaram o nome um do outro. Ela dá dicas para quem pretende fazer uma tatuagem. “É importante fazer em um lugar do corpo que possa esconder com a roupa, para não atrapalhar no trabalho. A pessoa também deve procurar um tatuador que saiba desenhar. Não adianta querer pagar barato. Junta dinheiro, pede presente de aniversário em dinheiro, mas faça num lugar bom. A pessoa também deve ter consciência do que quer, e não ser levada por modinhas”.

A noiva

Arquivo Pessoal
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Quem tem uma bela tatuagem tem orgulho de mostrá-la, como a publicitária Carol Reine, 28. Nas fotos que fez para seu casamento, ela está vestida de noiva, exibindo a tatuagem de seu braço esquerdo, que representa seus três cães e três gatos – ela até se envolveu na causa da proteção animal por causa deles. Além desta, ela tem uma estrela dupla na nuca, em homenagem a um amigo já falecido, e uma carpa em forma de yin yang, o símbolo do equilíbrio, nas costas, junto do trecho de uma letra de música.

As estrelas foram feitas quando ainda tinha 16 anos. “Sempre quis fazer uma tatuagem, mas até então não tinha um desenho que significasse algo. Quando perdi um dos meus melhores amigos, veio a inspiração pra fazer algo que me fizesse lembrar dele. Nos prime,iros dias, achava que estava escondendo do meu pai, mas ele já tinha percebido. Ao mesmo tempo, fazia questão de prender o cabelo pra que todo mundo visse”, afirma.

Ela também tem planos de estilizar uma pena de pavão para representar o casamento, já que ela usou um vestido com rendas inspiradas nestas penas, e colocou-as também no arranjo de cabelo e no buquê. “Apesar do apelo visual, a tatuagem é algo muito pessoal. Por mais que muita gente faça pelo apelo estético, a tatuagem sempre trará lembranças do momento e da motivação pela qual ela foi feita. É uma forma de reafirmação de conceitos, de lembrar pra sempre de algo e reinterpretar de acordo com o momento que estivermos passando”, explica.

Hare Krishna

Daniel Derevecki
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Tulasi Manjiari Devi Dasi esperou completar 18 anos para fazer a primeira tatuagem. Assim como Fernanda, escolheu as estrelas atrás da orelha, porque naquela época era moda. Ela fez a tatuagem sem os pais saberem e só um ano depois a mãe descobriu. “Estava sentada no banco da frente do carro e ela estava atrás. O vento bateu no meu cabelo e ela viu a tatuagem. Ela ficou chocada e até chorou, mas depois passou”, descreve.

Mal sabia ela que a filha se casaria com o tatuador Bhagavan Dasa e faria outras cinco tatuagens. Tulasi conta que, quando fez a segunda, já estava mais madura e via o mundo da tatuagem de forma diferente. Ela criou consciência do que tatuar e porque tatuar, sabendo que o desenho não pode ser apagado tão facilmente. Duas das tatuagens dela cobrem cicatrizes com desenhos que ela gosta e têm grande significado. A do braço direito é a representação de Radha, que é o aspecto do amor de Deus, sua energia feminina, e de Krishna, a suprema personalidade de Deus.

Bhagavan, que atua profissionalmente há onze anos, conta que hoje muitas mulheres fazem tatuagens maiores que as dos homens. Ele acredita que, a partir do momento em que passaram a aparecer pessoas tatuadas na televisão e no cinema, dissociadas do perfil marginal, a tatuagem virou moda. Na época do Big Brother Brasil, ele conta que muitas pessoas o procuravam querendo fazer tatuagens iguais às dos participantes. “Agora, tatuagem não é mais coisa de desocupado e presidiário. É uma arte cara e dá status”, afirma.

A tatuadora

Daniel Derevecki
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Nesse novo contexto de valorização das tatuagens, as mulheres não estão apenas sendo tatuadas. Também estão tatuando. Em Curitiba, várias tatuadoras já têm público fiel e ganharam espaço no mercado. Uma delas é Sheron Anne, que se tornou tatuadora há nove anos. Aos quatorze, sozinha e de forma caseira, ela tatuou uma estrelinha no pulso. Aos 21, foi a um estúdio fazer outra tatuagem e achou tudo muito interessante.

“Quando fiz 24 anos, ganhei o equipamento de presente de um ex-namorado. Como o mercado é muito fechado em Curitiba, fui para São Paulo aprender com um tatuador. Quando voltei, meu primeiro ponto fixo foi em um salão de beleza”, detalha. Talvez por atender em salão ou porque tem um traço muito fino, a maioria do público dela sempre foi composto por mulheres. “Os homens querem tatuagens maiores, as mulheres querem mais detalhes. Às vezes, surgem algumas modinhas e vem muita gente querendo fazer a mesma coisa”, conta.

Uma das clientes dela é a estudante Amanda Bonetti, de 20 anos. Quando tinha apenas 13, fez a primeira tatuagem com outro profissional. Juntou a mesada, falsificou a assinatura dos pais no termo de autorização e fez uma fada enorme, que começa na coxa, passa pela virilha e vai até o quadril. Mais madura, procurou Sheron para cobrir o desenho com algo mais bonito, com um novo si,gnificado. “Ano passado, vim falar com ela e, enquanto estava juntando o dinheiro, fui pensando no novo desenho”, revela.

Depoimento

Durante as entrevistas para essa matéria, me identifiquei com cada uma das personagens, por vários motivos. Também contei os minutos para fazer 18 anos e fiz a minha primeira tatuagem, um yin yang na nuca. É o símbolo do equilíbrio, que tento buscar diariamente, e um desenho que me traz boas lembranças. Quase quatro anos depois, tatuei meu anjo da guarda, um guerreiro que me acompanha na correria da cobertura policial da Tribuna, minha editoria original. Ainda tatuei um trecho da partitura de uma música que marcou uma fase da minha vida – Black, do Pearl Jam.

Tatuei também um dadinho, que gosto muito. Quando me olho no espelho, depois de observar todas as mulheres tatuadas que conheci, percebo que contamos nossa história na nossa pele. Cada traço nos faz ter mais orgulho de tudo o que já vivemos, e é por isso que a tatuagem nos faz mais belas.

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