Volta ao trabalho

No recomeço de uma rotina que, a rigor, não devia ter parado – a abertura dos trabalhos do Judiciário – era de respeito o clima entre os presidentes da República e do Supremo Tribunal Federal – STF. Assim narra a crônica brasiliense, acentuando que neste clima também entrou o presidente da Câmara Federal, João Paulo Cunha e, embora ausente, o presidente do Senado, José Sarney. Tapinhas nas costas, sorrisos comedidos, gentilezas. O episódio encerrou o período de francas hostilidades entre o presidente Lula e o ministro Maurício Corrêa, que chegaram negar a fala não faz muito. Ainda bem.

Nos discursos, entretanto, as divergências se aprofundam. Lula colocou o dedo na ferida e voltou a defender o controle externo da magistratura três minutos depois de Corrêa condená-lo como uma ameaça à independência do poder. O debate desceu alguns degraus para se alastrar também nos espaços do Superior Tribunal de Justiça, cujo presidente, Nilson Naves, vê na proposta coisa mais séria ainda: ameaça à democracia e à isenção nos julgamentos.

Tudo o que se quer de um julgador é que ele seja justo. Que não se deixe levar pelos argumentos de nenhum dos lados em disputa. Nem daquilo que os litigantes representam, nem de seus advogados. Daí a importância do argumento sempre levantado pelos que se manifestam contrários ao controle externo da magistratura. Em nome dessa neutralidade nem sempre garantida, a magistratura tem se aferrado ao argumento contrário a qualquer ingerência, admitindo apenas e tão-somente seus mecanismos de controle internos, já existentes e, segundo dizem, em funcionamento, apesar de casos como o revelado pela Operação Anaconda – uma exceção no honrado cenário nacional.

Lula, incorporando velhas doutrinas de seu partido, tem posição diferente. E as deixou muito claras no discurso que fez por escrito durante a sisuda solenidade de reinício dos trabalhos do Judiciário – um ritual que obedece à tradição, mas a cada ano mais parece obsoleto e ultrapassado diante da sempre denunciada morosidade processual e da proliferação de processos que entulham gavetas, prateleiras e computadores. Às ponderações de Lula, para quem “não há medida isolada que possa solucionar os problemas do Judiciário como num passe de mágica”, Corrêa observou que o fundamental para o povo é “justiça rápida”. E para alcançar esse objetivo existem outros degraus – entre eles, como disse Nilson Naves, independência orçamentária, isto é, recursos abundantes, suficientes e à altura das necessidades do poder – garante da democracia. Na verdade, este é o principal pano de fundo de toda a já histórica desavença entre o Executivo e o Judiciário.

Vamos ter que nos acostumar. Esse debate acadêmico, que já vem de longe, vai durar ainda um bocado. Para a grande maioria dos brasileiros, é conversa sem muita graça. Mas a reforma do Judiciário, que se arrasta há tantos anos, interessa, sim, à cidadania esclarecida. E a reforma, segundo garante o senador Aloízio Mercadante, vai acontecer este ano porque é assunto prioritário na pauta do Congresso.

Tudo o que se espera, porém, é que o debate aconteça de forma serena ou, pelo menos, dentro desse clima de respeito mútuo que se viu na segunda-feira que passou. Normalmente, parte ponderável dos integrantes da magistratura costumam reagir movidos não apenas pelos elevados objetivos gerais, mas cedem a caprichos corporativistas que acabam contaminando irremediavelmente a discussão. Essa, aliás, é a principal causa do atraso nas reformas que têm nas teses do controle externo e da súmula vinculante (e aqui não se fala de férias em dobro e outros privilégios) apenas dois pequenos icebergs. Que a volta ao trabalho num Brasil que nunca deixa de trabalhar seja esse recomeço promissor a apontar para a nova era que todos esperamos.

Voltar ao topo