Vinho e medicina

Durante dois milênios da história médica e cirúrgica, o vinho foi o anti-séptico universal e único. Com ele, as feridas eram lavadas, e tornava-se a água potável.

“O vinho é o mais notável de todos os remédios; onde falta o vinho, os remédios se fazem necessários.” (Talmud, 500-400 a.C.). “O vinho molha e tempera os espíritos, acalmando as preocupações da mente. Se você bebe moderadamente, o vinho gotejará em seus pulmões como o mais doce orvalho da manhã…” (Sócrates, 470-399 a.C.). “O vinho é bebida excelente para o homem, tanto sadio como doente, desde que usado adequadamente, de maneira moderada e conforme seu temperamento.” (Hipócrates, 460-370 a.C). “O vinho é o amigo do moderado e o inimigo do beberrão.” (Avicena, 980-1037). “Só a dose faz o veneno.” (Paracelso, 1493-1541). “O vinho pode ser, de direito, considerado a mais higiênica das bebidas.” (Pasteur, 1822-1895). “A penicilina cura os homens, mas é o vinho que os torna felizes.” (Fleming, 1881-1945).

Avicena, famoso esculápio do mundo árabe, expressa, sinteticamente, a relação desejável de moderação com o contraponto da dependência destruidora. Exatamente em virtude das mudanças comportamentais provocadas pelo álcool, durante uma refeição com seus discípulos, Maomé concluiu pela abolição do uso pelos seguidores de sua doutrina.

Galeno (131-201), o maior médico grego depois de Hipócrates, foi nomeado médico dos gladiadores em Pérgamon. Cuidava da dieta e dos ferimentos desses lutadores, gabando-se que nenhum deles havia morrido em suas mãos, o que parece improvável, já que o único recurso de que dispunha para tratar graves ferimentos era lavá-los com vinho. Ele observou que as lesões não sofriam putrefação, quando tratadas com vinho, e que quando ocorrida evisceração, banhando-se as alças intestinais com aquele líquido antes de recolocá-las no abdômen se evitava a peritonite(!). Galeno escreveu, também, um tratado denominado De antídotos, onde faz considerações perfeitas sobre os vinhos, tanto italianos como gregos, bebidos em Roma naquela época, descrevendo como analisá-los, como guardá-los e envelhecê-los.

Na Idade Média (século XIV), publicou-se o primeiro livro sobre o vinho – Liber de Vinis. Escrito pelo espanhol ou catalão Arnaldus de Villa Nova, médico e professor da Universidade de Montpellier, o livro continha uma visão médica da bebida, provavelmente a primeira desde a escrita por Galeno. Na edição, cita as propriedades curativas do vinho aromatizado com ervas em uma infinidade de doenças “restabelecendo o apetite e energias, exaltando a alma, embelezando a face, promovendo o crescimento dos cabelos, limpando os dentes e mantendo a pessoa jovem”.

E assim têm sido as relações do vinho com os homens, divididos entre adoradores e detratores. Para estes, nada justifica o uso de bebidas alcoólicas e engrossam os movimentos absenteístas colecionando casos de degradação física, mental e social, levando ao “desmanche” familiar. Como esses casos não constituem a maioria, o movimento oposto, dominante, além do uso por prazer descobre vantagens e passa a propagar a ingestão moderada de vinhos até como forma de proteger-se de merecidos infartos.

Por mais estranho que possa parecer, os estudiosos observaram um “paradoxo francês” no qual as conseqüências da ingestão habitual de alimentos gordurosos estão contrabalançadas pelo uso diário de vinho, tinto, de preferência, pelos franceses do sul.

Para consolidar esse “desaforo”, estudos sérios foram realizados isolando-se numerosas substâncias químicas derivadas do vinho -componentes fenólicos divididos em flavonóides e não-flavonóides. Nos primeiros, distinguem-se as catequinas (sementes e polpas da uva) flavonóis e antocianidos (casca). No segundo grupo, o resveratrol é considerado como a principal substância terapêutica. Recentemente, artigo, em periódico americano, descreve dois novos antioxidantes potentes -quercetina e miricetina.

As ações dessas substâncias parecem proporcionar um papel decisivo na proteção do endotélio vascular, prevenindo a aterosclerose, a ocorrência de insuficiência circulatória e infartos. Mesquelier e seus colaboradores, desde a década de 50, na Universidade de Bordeaux, concluíram que esses polifenóis reforçam as estruturas das paredes arteriais, criando pontes suplementares entre as cadeias de peptídeos do colágeno.

Borzeix (1986) concluiu que os polifenóis agem igualmente, inibindo a formação de uma enzima composta de histidina, favorecedora de deposição de placas de ateroma na parede vascular. Pezzuto (1997), trabalhando com o resveratrol, afirma “que essa substância tem ação antioxidante e antimutagênica”. Protásio Lemos da Luz, do Incor (São Paulo), estudou a formação de placas de gorduras em artérias de ratos submetidos à ingestão de vinho tinto, suco de uva e grupo controle. Concluiu que o vinho e o suco são capazes de reduzir essa formação nas artérias dos ratos estudados. Boa notícia para os abstêmios, desde que apreciem uvas ou seu suco.

De qualquer modo, um ou dois cálices de vinho tomados às refeições proporcionam um ótimo acompanhante para os alimentos e os efeitos são modestos, principalmente para os aficionados, não se podendo negar que a leve euforia despertada talvez até seja um bom motivo para contrabalançar as tensões do cotidiano e ajude a explicar o paradoxo.

O usuário de vinho costuma associar a sua ingestão às refeições e raramente o vemos fazendo parte do ABC (alcoólicos bem conhecidos), ao contrário dos que fazem dos destilados companheiros de “happy hour”, no início, e, de todas as horas na “pós-graduação alcoólica”.

No meio está a virtude – não vamos fazer torcida organizada, camiseta cor-de-vinho com uma taça borbulhante e nem exorcizar a primeira manufatura de Noé logo após ter salvo toda a criação, em que pese ao solene pileque, que acabou sobrando para Cam, primeira testemunha da falta de comedimento com os fermentados!

Segundo a revista Wine Spectator, dezembro de 1999, durante um leilão de vinhos em Nova York, alugém teria dito que o Musigny 1934 Vielles Vignes, de Comte Vogüé, era até melhor que sexo! Estivesse lá um amigo meu, golfista, teria imediatamente atalhado – perdão, cavalheiro: Ou eu não sei apreciar vinhos ou o senhor não aprendeu nada na vida!

Referências:

1. Schroeder, O. B. Inicação ao vinho. Editora da UFSC -Florianópolis – 1985.

2. Pickleman, J. A glass a day Keeps the doctor. Am. Surgeon – 56:395-397, 1990.

3. Johson, H. The Story of Wine. Mitchell-Beazley -London, 1989.

Alberto Accioly Veiga

é médico, professor e decano do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

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