Golpistas vendem terreno no mangue em Guaratuba

Quem escuta a história acha que não passa de conversa de pescador. De tão absurdo, o golpe da venda de lotes no Residencial Village, em Guaratuba, virou motivo de piada entre a população. Mas quem caiu no conto não acha graça nenhuma. Desde 1976, pessoas são enganadas porque os lotes vendidos ficam debaixo d’água. A área é, na realidade, um manguezal que faz parte do Parque Estadual do Boguaçu.

Depois de lutar três anos para tentar recuperar o que perdeu comprando lotes no Village, o empresário Marcos Arroio pôde comemorar pela primeira vez na semana passada. Ele comprou, em 2002, 31 terrenos por R$ 110 mil de Cotingo José da Silva Mota, seu advogado na época e dono da imobiliária Araguaia, em Joinville. No local, Arroio pretendia construir uma pousada. "Quando fechei negócio, me foi mostrada uma área completamente diferente e só depois descobri que os terrenos que comprei ficavam debaixo d’água", conta.

Mota era pessoa de confiança de Arroio, que jamais desconfiou que seu próprio advogado poderia aplicar esse golpe. Mas Mota contou com a ajuda de muita gente. O esquema feito para sustentar a maracutaia foi bem montado. Além da imobiliária Araguaia, que oferecia os lotes, existiu a conivência da Bolsa de Valores Imobiliários do Norte do Estado de Santa Catarina, que emitiu laudos de avaliação certificando que os terrenos comprados por Arroio eram "secos e de ótima compactação, sendo propícios para a construção civil".

Todo o golpe não teria sido aplicado caso não tivesse havido conivência do 3.º Ofício de Notas de Joinville que aceitou sucessivamente, procurações que estavam canceladas pelo antigo proprietário da área, um agricultor usado como "laranja" por gente influente de Guaratuba.

A maior parte das pessoas que compra terrenos no Village sabe que as terras ficam debaixo d’água. No entanto, os lotes são comprados por empresas ou pessoas de má-fé, que usam os terrenos comprados por valores simbólicos para dar continuidade ao golpe ou ainda, oferecer a terra como penhora de dívidas ou como garantia em empréstimos. Foi assim que o Banco Mercantil acabou se envolvendo na história, quando concedeu financiamento de R$ 150 mil para os sócios Jorge Alan Wunderlich – dono da Bolsa de Valores do Norte de SC – e Alberto Holderegger – cônsul honorário da Suíça em Santa Catarina – obtendo como garantia diversos terrenos "flutuantes" do Jardim Village.

Poucos compraram terrenos no local com o intuito de utilizar a terra de boa-fé. No entanto, depois de descobrirem o "esquema" acabam preferindo se calar, amedrontados pelas ameaças sofridas. A Promotoria de Guaratuba calcula que mais de 16 mil lotes foram vendidos no Village. Arroio, no entanto, conta que a indignação superou o medo e ele foi investigando o caso por conta própria. Denunciou o esquema à polícia e ao Ministério Público.

Com o início do processo criminal, as partes envolvidas começaram a se aborrecer com Arroio e os problemas aumentaram. O empresário foi obrigado a mandar a família toda para o exterior, por motivos de segurança e o próprio Arroio já sofreu diversas ameaças de morte. No último dia 18, o juiz João Marcos Buch acatou o pedido de prisão feito pelo promotor criminal de Joinville, Paulo Cezar Ramos de Oliveira, e Mota foi preso. De acordo com o promotor, o pedido de prisão foi elaborado em decorrência das ameaças sofridas por Arroio. "Quando o autor de qualquer crime passa ameaçar vítimas ou testemunhas do processo, cabe o pedido de prisão cautelar", explicou o promotor.

Um homem chamado José Reinaldo Gerônimo procurou Arroio para dizer que havia sido contratado por Mota para matá-lo, recebendo em troca R$ 15 mil. Gerônimo é amigo de Mota e trabalhava para Carlos Roberto Passos -corretor de imóveis e um dos cabeças do esquema ilícito de venda de terrenos, preso em outubro do ano passado em Itajaí por estelionato. A ameaça foi registrada no dia 28 de fevereiro na 3.ª Delegacia de Joinville. Passos tinha mandado de prisão expedido em 2000. Conhecido como Alemão, foi condenado a quatro anos e meio de prisão. Em sua ficha criminal estão descritos diversos crimes, entre eles furto, receptação de veículos e venda de terrenos inexistentes. Com isso, acumulou um patrimônio considerável: um apartamento na avenida beira-mar de Itajaí e quatro BMWs.

Depois de um desentendimento que teve com Mota e Passos, Gerônimo foi até a casa de Arroio avisar da "encomenda" que lhe foi feita. O promotor, entendendo que a ameaça colocava em risco a vida de Arroio e poderia prejudicar o andamento do processo criminal que Mota responde por estelionato, pediu a prisão cautelar do acusado. Os advogados de Mota tentaram revogar a prisão cautelar, porém o juiz da Comarca de Joinville negou o pedido e antecipou a próxima audiência do processo para o dia 24 de abril, quando Arroio e outras testemunhas serão ouvidas.

Área é de preservação ambiental

O Jardim Village fica numa área de preservação ambiental, transformada em parque estadual em 1998. O loteamento é formado por 476 quadras com cerca de 40 terrenos em cada uma delas. Toda a área está registrada em nome de Euclésio Gilberto Reis que, de acordo com dados da Polícia Civil, é natural de Camboriú, teria 52 anos, e declarava em 1975, quando tirou a segunda via da carteira de identidade, que era comerciante. Só que nunca ninguém ouviu falar neste homem em Guaratuba, que seria dono de uma área com mais de sete milhões de metros quadrados.

José Ananias dos Santos, ex-prefeito de Guaratuba, conta que a venda de terrenos inexistentes é prática antiga e está espalhada pela cidade. "Concluímos um plano diretor que iria acabar com estes loteamento irregulares. Existem pelo menos oito na cidade. Mas não ganhamos a eleição e a atual gestão não está dando atenção para o assunto", afirma o ex-prefeito. Ele disse, ainda, que o loteamento do Village foi feito na gestão do prefeito Diógenes Caetano dos Santos, em 1976, e que os donos da propriedade eram Luiz Carlos Jamur, filho do atual prefeito Miguel Jamur, e Aljor Fernandes Silvestre, suposto corretor imobiliário que vive em Curitiba.

De acordo com o registro feito em 1976, no 2.º Cartório de Ofícios de São José dos Pinhais, a área teria sido transferida para Reis em 1976 pelos donos do terreno Dib Jamur, Iracema Jamur, Miguel Jamur, Ester de Souza Jamur, Fernando Yurk Sobrinho, Jacira Jamur Yurk, Nicolau Jamur Sobrinho, Paulo Saporski Filho e Arlinda Jamur Saporski.

Logo após a divisão do terreno em quadras, Euclésio teria passado uma procuração para Aljor e Luiz Carlos Jamur, para que os lotes fossem vendidos. Documentos comprovam que todas as transações foram realizadas por procurações e nunca pelo proprietário. Todo o golpe não teria sido aplicado caso o 3.º Ofício de Notas de Joinville não tivesse aceitado tais procurações que estavam canceladas por Euclésio e que o cartório simplesmente ignorou o fato, deixando de registrar o cancelamento e permitindo que o golpe continuasse sendo aplicado.

O promotor de Guaratuba, Lucilio Held, está acompanhando o caso há, pelo menos, quatro anos e até agora não conseguiu achar uma solução para o problema. "Estamos procurando uma forma jurídica adequada para anular as mais de 16 mil matrículas de compra e venda dos lotes no Jardim Village. Já o aspecto criminal, este já nem pode ser julgado porque, como o fato aconteceu nos anos 70, o crime já prescreveu", explica. O procurador afirma que Euclésio teria sido usado como "laranja" no esquema.

Ananias afirma que muitos bancos aceitam os terrenos como garantia e isso faz com que diversas empresas comprem os lotes por preços irrisórios, mesmo sabendo que "é fria". 60% desses terrenos do Village estão vendidos em São Paulo. Cansei de receber pedidos, enquanto estava na prefeitura, de pessoas querendo pagar o IPTU desta área, mediante fornecimento de avaliações dos terrenos, sempre em valores bem altos, para oferecê-los como garantia", conta.

Ananias disse que não sabe explicar como o esquema é montado, mas afirma que o Village não é o único exemplo. (SR)

Prefeito diz que está sendo caluniado

O prefeito de Guaratuba, Miguel Jamur, se exaltou ao ser questionado sobre a propriedade do Jardim Village. "Estou sendo caluniado. Não sou dono de terra alguma", disse. Jamur afirmou que herdou do pai uma área nas proximidades do Rio Boguaçu, mas nega que o Jardim Village esteja dentro do terreno. "Eu doei toda a área para o meu filho, Luiz Carlos Jamur, e não tenho conhecimento de venda de terrenos embaixo d’água. Nunca ouvi falar nisso", afirmou.

O prefeito disse não ter conhecimento do assunto e que a prefeitura nunca foi informada pelo Ministério Público sobre o caso. "Vocês precisam falar com o meu filho sobre isso. Passei o terreno para ele e ele que cuida disso" afirmou. Luiz Carlos Jamur foi procurado pela reportagem de O Estado, mas não atendeu aos telefonemas.

Mas os moradores do Mirim, em Guaratuba, contam uma história bem diferente. Quando se fala no Jardim Village, todo mundo responde a mesma coisa: a área é dos Jamur. Um dos pescadores mais antigos da região, que prefere não se identificar por motivos de segurança, conta que levou – de barco – o filho do prefeito e um sócio para tirar as primeiras fotos do local. Isso aconteceu há 27 anos. "Me lembro como se fosse hoje. Eles me pagaram 20 litros de óleo pelo frete", conta. (SR) 

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