Uma área equivalente a mais de 220 campos de futebol de vegetação nativa, incluindo 4.000 araucárias, árvore símbolo do Paraná e ameaçada de extinção, está sendo derrubada para a passagem de novas torres de transmissão de energia elétrica pelo estado. O projeto prevê 1.000 km de linhas cortando 24 municípios e ainda passa pela Escarpa Devoniana, formação protegida do território paranaense.

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A obra, em fase inicial, é conduzida pela Engie, multinacional francesa que venceu o leilão de 2017 da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) para reforçar o sistema energético do país. Segundo a empresa, o projeto, intitulado Gralha Azul (ave símbolo do Paraná e uma das espécies dispersoras do pinhão), vai movimentar R$ 2 bilhões e gerar 4.000 empregos diretos.

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Porém, entidades de proteção ambiental apontam supostas irregularidades nas licenças. Há cerca de um mês, o Ibama chegou a suspender a derrubada das árvores depois que o Ministério Público do Paraná pediu esclarecimentos ao órgão, mas o projeto já foi retomado.

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A denúncia aos promotores foi feita pelo OJC (Observatório Justiça e Conservação), que aponta falta de transparência no processo de concessão e incoerências nos levantamentos apresentados pela Engie, descobertos numa análise feita pela Universidade Federal do Paraná.

Para os especialistas, os pedidos da empresa junto aos órgãos responsáveis pelas autorizações, principalmente o IAT (Instituto Água e Terra), não levam em consideração vários impactos.

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“Nunca vi um trabalho tão fraco tecnicamente em dez anos de experiência. Foi para ‘cumprir tabela’, subestimando todas as especificidades da região”, resumiu Eduardo Vedor, doutor em geografia e um dos especialistas que assinam o estudo.

A Engie nega as acusações e destaca que tem todas as licenças para continuar trabalhando. A previsão inicial é de que o projeto seja finalizado em cerca de um ano.

Um dos principais questionamentos dos ambientalistas é sobre o traçado das linhas. O levantamento aponta que a empresa evitou passar por terrenos privados, o que demandaria indenização aos proprietários.

Impactos

O projeto atinge a área em que o engenheiro florestal Leandro Schepiura pratica o reflorestamento, em Campo Largo, região metropolitana de Curitiba. Em maio, ele gravou em vídeo sua indignação pela derrubada de araucárias centenárias, todas carregadas de pinhões.

“Luto para reflorestar o planeta, para dar exemplo de que é possível transformar nossa comida, e ver a derrubada de uma espécie altamente ameaçada é impactante, dá o sentido contrário, de que o que resta é continuar depredando e derrubando tudo”, disse.

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No Paraná, resta menos de 0,8% de área contígua e bem conservada de araucárias, associadas ao bioma mata atlântica. A área ocupada pela espécie cobria originalmente 200 mil km². O estado abriga o Parque Nacional dos Campos Gerais, maior floresta de araucárias protegida no mundo.

Outra área impactada é a do turismo. O estudo da UFPR aponta que o cenário paisagístico da região pode ficar comprometido.

A obra acabou com os sonhos do contador Ronaldo Montalto, que queria construir um refúgio para montanhistas como ele. Há três anos, ele comprou um terreno de 14 hectares -que já tinha uma torre instalada– no “pé” da Escarpa Devoniana, também em Campo Largo, mas logo depois surgiu o novo projeto.

“É triste ver um projeto como esse numa região ímpar, com nascente de rio e remanescente de araucárias, onde já há uma linha de transmissão. Será que é realmente necessário mais uma?”, lamentou.

O andamento da obra também preocupa o ator Luis Melo. Curitibano, ele escolheu a paisagem da Escarpa Devoniana para montar em São Luiz do Purunã um espaço de educação ambiental e um complexo cultural para artistas. “Essa paisagem é uma identidade paranaense de extrema beleza e nossas florestas já estão acabando.”

Os ambientalistas afirmam que, pela extensão de vegetação a ser derrubada, o Ibama deveria ser consultado, o que não teria ocorrido.

Também dizem acreditar que entidades foram negligentes na análise de impactos em outras esferas, como a do patrimônio arqueológico e das comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas, do local.

O que dizem os responsáveis

Em nota, o IAT afirmou que, como a obra não ultrapassa os limites do Paraná, o licenciamento ambiental compete ao órgão. Destacou ainda que todos os estudos necessários foram apresentados pela empresa e receberam a anuência do instituto.

“O empreendimento é essencialmente de utilidade pública e o traçado escolhido foi aprovado por apresentar o menor impacto aos meios físicos, biótico e socioeconômico”, completou.

O Ibama não respondeu aos contatos da Folha até a conclusão desta reportagem.

O Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) apontou que os sítios arqueológicos sob impacto direto estão sendo resgatados e os atingidos indiretamente estão sendo cadastrados, sinalizados e protegidos, seguindo as normas técnicas. A entidade não deu mais detalhes sobre o plano de proteção.

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A Fundação Palmares informou que o processo de licenciamento das torres seguiu todos os trâmites legais e atendeu aos critérios do órgão. Segundo a fundação, os planos de mitigação apresentados pela empresa foram “colaborativamente elaborados pelas comunidades” quilombolas de “maneira claramente participativa com os comunitários”.

Para o diretor-executivo do OJC, Giem Guimarães, falta ainda maior debate do projeto com a sociedade.

“Batizar esse projeto de Gralha Azul é uma afronta ao povo do Paraná. Esse obscurantismo dos governos é o verdadeiro ‘passando a boiada'”, disse, citando a frase do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

O MP afirmou que ainda está tentando esclarecer os pontos questionados junto à empresa, mas não exclui a hipótese de uma ação. “Temos que ter medidas compensatórias proporcionais, senão a sociedade vai ficar apenas com o ônus da obra”, justificou o promotor Alexandre Gaio.

Gaio disse ainda que o próprio edital da Aneel não atentou para as particularidades da área atingida. “Parece que prevaleceu uma agenda econômica.” Procurada pela Folha, a agência informou que respondeu aos questionamentos do MP, mas não disponibilizou o conteúdo da informação.

A Engie afirmou que o corte de árvores foi autorizado pelo órgão competente, mas não confirmou o número de espécies que serão derrubadas. A empresa comunicou apenas que 7% da área atingida é composta por araucárias, o que equivale a cerca de 15 campos de futebol.

A multinacional disse ter se empenhado para reduzir o impacto ambiental por meio de técnicas de engenharia e afirmou ter buscado desviar áreas de preservação no traçado das torres. Também afirmou que todas as licenças foram obtidas de acordo com as leis.

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Além da derrubada de árvores, disse a Engie, todos os impactos previstos pelo projeto são alvos de compensações ambientais. A empresa afirmou ter apresentado ao IAT propostas para cada área e disse que aguarda manifestação para que elas sejam validadas.

Há, segundo a Engie, 17 programas socioambientais acompanhando a implantação do projeto, com monitoramento de flora e fauna, resgate arqueológico, recuperação de áreas degradadas, educação ambiental e comunicação permanente e transparente com a sociedade.

Marcio Neves, diretor de implantação do projeto Gralha Azul, destacou à Folha o valor investido na obra -em parte financiada pelo BNDES- e os empregos gerados, além do reforço na energia da região, que vai favorecer indústrias e o agronegócio na área.

“Detratores de projetos ou antagonistas de qualquer tipo utilizam como primeira alegação a falta de transparência, o que de certa forma é uma acusação muito vazia. Não conheço processo tão democrático, transparente e até exigente como o processo de licenciamento de infraestrutura no Brasil”, finalizou Gil Maranhão, diretor do grupo Engie.