Os juros no atual Código Civil

O advento do Código Civil atual reacendeu a discussão acerca do regime dos juros no ordenamento jurídico brasileiro. O presente artigo dedica-se a analisar duas questões relativas a essa discussão: 1) Qual é o percentual dos juros legais moratórios previstos no art. 406, do Código Civil? 2) Qual é o percentual máximo de juros convencionais admitido pelo ordenamento pátrio?

Para responder a essas indagações, faz-se necessário abordar alguns conceitos essenciais acerca do regime jurídico dos juros previsto no ordenamento pátrio, conceituando os juros e classificando-os segundo sua fonte e sua finalidade.

Dessa maneira, conceitualmente, pode-se definir os juros como frutos civis. São frutos porque são provenientes de uma coisa principal (no caso, o capital de dinheiro indisponível) e renovam-se periodicamente. São civis porque constituem rendimentos provenientes da utilização da coisa por outra pessoa que não o seu titular(1).

Quanto ao critério da sua fonte, os juros podem ser legais e convencionais. Os juros legais são aqueles cuja fonte é o preceito legal enquanto os juros convencionais têm como fonte o negócio jurídico firmado entre as partes, ou seja, a vontade é a fonte do dever de pagar os juros convencionais.

Os juros, na qualidade de frutos civis, segundo o critério de sua finalidade, podem ser classificados como compensatórios (ou remuneratórios) e moratórios. Os juros compensatórios incidem porque o seu titular não pode utilizar o capital emprestado e os juros moratórios incidem porque o capital ou uma vantagem econômica está indisponível para o seu titular em decorrência do descumprimento de uma obrigação no termo previsto no título desta. Assim, os juros moratórios resultam ?… da imposição de uma pena, em razão da mora no adimplemento da obrigação, atuando como uma indenização pelos prejuízos supostos pela mora(2)?.

Estabelecidos esses conceitos prévios, torna-se possível responder às questões antes enunciadas. A primeira delas refere-se ao art. 406, do Código Civil, que prescreve: ?Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento dos impostos devidos à Fazenda Nacional(3)?. Assim, em caso de descumprimento de uma obrigação qualquer, por exemplo o atraso no pagamento do aluguel de um imóvel recebido em locação, o percentual de juros devidos pelo devedor inadimplente será, salvo convenção entre as partes, o devido ?para a mora do pagamento dos impostos devidos à Fazenda Nacional?. Diante disso, duas perguntas apresentam-se: Em caso de juros moratórios legais (que não decorrem de convenção entre as partes), qual é o percentual da taxa de juros para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional? Em caso de juros moratórios convencionais (que decorrem de negócio jurídico firmado entre as partes), qual é o percentual máximo da taxa desses juros? Enquanto a primeira pergunta pode ser respondida de imediato, a segunda será respondida conjuntamente com a questão relativa ao percentual máximo dos juros convencionais admitido pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Em relação à taxa para a mora no pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional, entende-se que ela corresponde à taxa SELIC (Taxa Referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia)(4) porque ?… o art. 13 da Lei 9.065/95, fazendo referência ao art. 84 da Lei 8.981/95, estabeleceu que nos casos de mora no pagamento de tributos arrecadados pela SRF serão acrescidos juros equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia SELIC …?(5). Contudo, mesmo ao se considerar que a taxa SELIC é utilizada como índice para a mora no pagamento dos impostos devidos à Fazenda Nacional, a doutrina e a jurisprudência não são unânimes no entendimento que ela deva ser utilizada como taxa de juros legais para as relações privadas. Há dois motivos que justificam a discussão jurisprudencial e doutrinária: a taxa SELIC é variável, o que promove insegurança jurídica nas relações privadas; referida taxa dificulta os cálculos porque ela já abrange a correção monetária.

Para enfrentar esse tema pertinente aos motivos acima expostos, é preciso ressaltar que, tal como menciona a doutrina, o percentual dessa taxa pode ser fixado ?… não só pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central do Brasil (COPOM), pois esse Comitê pode delegar ao Presidente do Banco Central a prerrogativa de aumentá-la ou reduzi-la…?(6). Com isso, pode-se perceber que o percentual da taxa SELIC é variável e, desse modo, ensejaria insegurança jurídica caso fosse aplicado às relações jurídicas estabelecidas entre particulares, pois estes não estariam prevenidos acerca de qual índice de juros seria incidente para o caso de mora.

Ademais, como bem aponta Cavalieri Filho, no percentual da referida taxa ?… estão incluídos os juros e a correção monetária o que, na prática, poderia ensejar bis in idem ou, pelo menos, dificultar o cálculo dos juros(7)?.

Então, considerando que a adoção da taxa SELIC como percentual dos juros moratórios legais resultaria em insegurança jurídica e dificuldades pertinentes ao cálculo, a doutrina tem sugerido a remissão do art. 406, do Código Civil, ao percentual previsto no art. 161, §1.º, do Código Tributário Nacional(8). Nesse sentido, um grupo de juristas reunido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal propôs o seguinte enunciado interpretativo do art. 406, do Código Civil: ?20 – A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1.º (sic), do Código Tributário Nacional, ou seja, 1% (um por cento) ao mês(9)?. Esse Enunciado é justificado com o seguinte texto: ?A utilização da taxa SELIC como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, § 3.º (sic), da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a doze por cento ao ano?. O último argumento da justificativa não tem mais amparo em virtude da revogação do art. 192, § 3.º, da Constituição, por meio da Emenda Constitucional n.º 40/2003, mas os demais argumentos permanecem como justificativas plenas do Enunciado.

Em que pesem esses argumentos, como já afirmado, não é possível sustentar que a jurisprudência firme uma posição uniforme quanto ao tema, o que acresce imprevisibilidade quanto às discussões judiciais travadas(10).

Quanto ao percentual máximo de juros convencionais admitido pelo ordenamento pátrio é preciso mencionar que o Direito brasileiro adota um regime dúplice: um para os particulares em geral e outro para as entidades que integram o Sistema Financeiro Nacional (entre elas, as instituições financeiras privadas).

Para os particulares, a taxa de juros convencionais máxima é de 1% (um por cento) ao mês, sejam os juros compensatórios, sejam os juros moratórios. No que é pertinente aos juros compensatórios, o limite do percentual encontra-se na previsão do art. 591, do Código Civil, que estabelece que os juros incidentes sobre empréstimo de dinheiro entre particulares não pode superar o percentual do art. 406, do mesmo Código. Assim, pressupondo-se a remissão deste dispositivo ao art. 191, § 1.º, do Código Tributário Nacional, tem-se o limite percentual de 1% (um por cento). Caso não se adote tal presunção, a taxa SELIC seria o limite percentual, o que, ressalte-se mais uma vez, implica insegurança e imprevisibilidade na disciplina dos contratos e negócios jurídicos em geral.

Quanto aos juros moratórios convencionais, pertinentes às relações entre particulares, o limite percentual de 1% (um por cento) é previsto pelo art. 5.º, caput, do Decreto n.º 22.626/1933 (Lei de Usura)(11), que não foi revogado pelo atual Código Civil(12).

Já para as entidades que integram o Sistema Financeiro Nacional (entre elas, as instituições financeiras privadas, como os bancos), a taxa de juros poderá ser fixada pelo Conselho Monetário Nacional, nos termos do art. 4.º, VI, e XI, da Lei n.º 4.595/1964(13). Assim, os percentuais dos juros convencionais (moratórios e compensatórios) constantes dos serviços bancários ofertados aos particulares encontram apenas os limites fixados pelo Conselho Monetário Nacional. Desse modo, os juros praticados pelas instituições financeiras podem ser superiores aos limites fixados pelo Código Civil e pela Lei de Usura, tal como prevê a Súmula n.º 596, do Supremo Tribunal Federal: ?As disposições do Dec. 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o sistema financeiro nacional?.

Diante do que foi analisado, constata-se a polêmica que envolve as duas questões formuladas inicialmente. Importante, por fim, ressaltar que tal polêmica não se restringe apenas à discussão jurídico-dogmática. Diversamente, o debate pode ser ampliado e torna-se mais acirrado ao se inserirem os posicionamentos políticos que rondam a disciplina legal dos juros no ordenamento pátrio, especialmente no que tange ao tratamento legal diferenciado que é ofertado às instituições financeiras.

Notas:

(1) Nesse sentido, ver conceito singelo e esclarecedor de juros civis em GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: volume 1: parte geral. 4.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p.265.

(2) MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil, volume V, tomo II: do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.386.

(3) BRASIL. Código Civil. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

(4) Sobre tal taxa, manifesta-se Martins-Costa: ?A taxa SELIC (…) fixada por ato unilateral do Poder Executivo através do Conselho de Política Monetária do Banco Central (COPOM) é calculada sobre os juros cobrados nas operações de venda de título negociável, em operação financeira com cláusula de recompra. É uma taxa que reflete a remuneração dos investidores pela compra e venda de títulos públicos. Portanto, é uma ?taxa flutuante?, determinada exclusivamente pela relação entre o mercado (?investidores?) e o Governo, servindo para mensurar a remuneração de títulos públicos.? (MARTINS-COSTA, Judith. op.cit., p.400.)

(5) BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1.ª Turma. Recurso Especial n.º 710.385/RJ. Acórdão de 28 de nov. de 2006. Crase Sigma Empreendimentos Imobiliários S/C Ltda. e Light Serviços de Eletricidade S/A. Relatora: Ministra Denise Arruda. Relator para Acórdão: Ministro Teori Albino Zavascki. Disponível em: https://ww2.stj.gov.br/revistaeletronica/ita.asp?

registro=200401767789&dt?publicacao=14/12/2006.

Acesso em: 31 mai. 2007.

(6) Ibid., p.403-404.

(7) CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 6.ed., revista, aumentada. São Paulo: Malheiros, 2005. p.139.

(8) Nesse sentido, ver: Id., p.139 e MARTINS-COSTA, Judith. op.cit., p.404-405. O art. 161, § 1.º, do Código Tributário Nacional assim prescreve: ?Art. 161. O crédito não integralmente pago no vencimento é acrescido de juros de mora, seja qual for o motivo determinante da falta, sem prejuízo da imposição das penalidades cabíveis e da aplicação de quaisquer medidas de garantia previstas nesta Lei ou em lei tributária. § 1.º Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de um por cento ao mês.? (BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei n.º 5.172, de 25 de outubro de 1966.)

(9) BRASIL. Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. I Jornada de Direito Civil. Enunciado n.º 20 ao Código Civil. Disponível em: . Acesso em 29.05.2007.

(10) Para exemplificar a alternância de posições nos tribunais, menciona-se como exemplo a recente atuação do Superior Tribunal de Justiça: no julgamento do recurso especial n.º 710.385/RJ, ocorrido em 28/11/2006 (ver referência na nota 6 deste texto), que versou sobre responsabilidade contratual, a 1.ª Turma deste tribunal entendeu que o percentual de juros moratórios legais previstos no art. 406, do Código Civil, é a taxa SELIC. Já no julgamento do recurso especial n.º 437.614/SP, ocorrido em 12/12/2006, que também versou sobre responsabilidade contratual, a 4.ª Turma do mesmo tribunal estabeleceu que o percentual dos juros moratórios legais previstos no art. 406, do Código Civil, é de 1% (um por cento) ao mês. Quanto a este último acórdão, ver: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4.ª Turma. Recurso Especial n.º 437.614/SP. Acórdão de 12 de dez. de 2006. São Paulo Transporte S/A e Sebastiana Amâncio da Silva. Relator: Hélio Quaglia Barbosa. Disponível em: https://ww2.stj.gov.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200200612895&dt?

publicacao=05/02/2007. Acesso em: 31 mai. 2007.

(11) ?Art. 5.º Admite-se que pela mora dos juros contratados estes sejam elevados de 1% (um por cento) e não mais.? (BRASIL. Decreto n. 22.626, de 7 de abril de 1933. Dispõe sobre os juros nos contratos e dá outras providências.)

(12) Nesse sentido, ver a análise doutrinária efetuada por GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume II: teoria geral das obrigações. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p.380-383.

(13) ?Art. 4.º Compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes estabelecidas pelo Presidente da República: (…) VI Disciplinar o crédito em todas as suas modalidades e as operações creditícias em todas as suas formas, inclusive aceites, avais e prestações de quaisquer garantias por parte das instituições financeiras. (…) XI Estipular índices e outras condições técnicas sobre encaixes, mobilizações e outras relações patrimoniais, a serem observadas pelas instituições financeiras.? (BRASIL. Lei n. 4.595, de 31 de dezembro de 1964. Dispõe sobre a política e as instituições monetárias, bancárias e creditícias, cria o Conselho Monetário Nacional e dá outras providências.)

Rafael de Sampaio Cavichioli é advogado. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná UFPR. Professor de Direito Civil (Contratos) da Escola da Magistratura Federal do Paraná Esmafe/PR. Professor de Direito Civil do curso de graduação em Direito do Centro Universitário Positivo UnicenP.

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