O sistema de cotas no ensino superior em debate

Você já ouviu falar na política de cotas existentes em algumas instituições públicas de ensino superior do país? Você concorda com a destinação de um percentual das vagas do ensino superior para afrodescendentes? O sistema de cotas para negros no Brasil representa de fato uma necessidade para a inclusão racial? Enfim, qual é a sua opinião nesta matéria?

Esses questionamentos estão hoje na ordem do dia, principalmente no Estado do Paraná. O assunto não é novo, mas ressurgiu com bastante repercussão depois que a estudante Elis Wendpap Ceccatto, 20 anos, obteve neste ano ganho de causa em primeira instância contra a Universidade Federal do Paraná (UFPR), tendo recorrido à Justiça porque no Vestibular de 2005 não pode matricular-se no Curso de Direito, embora tivesse nota superior a de vestibulandos cotistas.

O processo tramita na 7.ª Vara da Justiça Federal em Curitiba, tendo a sentença da juíza Giovanna Mayer determinado que a UFPR deve realizar a matrícula da autora ?como aluna regular, sem quaisquer restrições pedagógicas ou acadêmicas?. Naturalmente, da decisão ainda cabe recurso, de cujo meio a universidade não vai abrir mão, conforme noticiou a sua procuradora jurídica, Dora Lúcia de Lima Bertúlio, esclarecendo que ?o sistema de cotas, ao contrário do que muitos alegam, é includente e vai ao encontro da nossa Constituição, que prevê a igualdade de todos?.

O ponto primordial da discussão consiste em apurar se a universidade pode ou não implantar um sistema de cotas sem uma lei federal que o autorize. Para uma das advogadas de Elis, que também é sua tia, professora Rosane Kolotelo Wendpap, a universidade não tem o poder de legislar, logo, ?com as cotas ela acaba criando direitos e obrigações que são competência do Congresso Nacional?. E apesar do risco do processo terminar após a estudante se formar em faculdade particular, a advogada afirma que a lide será levada às últimas conseqüências, já que o objetivo pedagógico da medida ?é mostrar para a sociedade que ela também pode controlar a constitucionalidade de uma lei?. Para a procuradora da UFPR, porém, a instituição está agindo dentro de suas atribuições e tem condições legais de formatar o programa de cotas. ?A universidade tem essa condição legal, inclusive isso foi discutido nas ações anteriores?, afirmou Dora Lúcia. [ In: http://g1.globo. com/Noticias/Vestibular/0,,MUL266014-5604,00-; acessado em 21/1/08 ]

Cabe aqui um parêntese, para esclarecer que a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) foi a primeira universidade pública de grande porte a utilizar no seu vestibular um critério de cotas raciais e que leva em conta a origem do estudante no processo de seleção, graças a uma lei aprovada pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, em 2001, que criou uma reserva para negros e pardos de 40% das vagas do total de 50% previsto para estudantes de escolas públicas. Já a primeira universidade federal a aprovar um sistema de cotas para negros no vestibular foi a Universidade de Brasília (UnB), fato ocorrido em 2003, destinando-se 20% das vagas para os afrodescendentes. No caso da UFPR, o sistema de cotas teve início em 2005, prevendo-se 60% das vagas aos candidatos em geral, 20% aos afrodescendentes e 20% aos alunos provenientes de escolas públicas.

Ao contrário do que acontece com a UERJ, tanto a UnB quanto a UFPR optaram pela política de cotas com base em medidas administrativas internas, situação que tem motivado vários pleitos judiciais por inconformismo. Por outro lado, não se deixa de argüir perante o Judiciário a constitucionalidade ou não de tais ações afirmativas, com base no princípio legal de que todos são iguais perante a lei, o que conferiria um caráter ?protecionista? à política de cotas adotada.

Neste último aspecto, cabe relembrar que o juiz federal, Paulo Cristóvão de Araújo Silva Filho, da 3.ª Vara Federal de Curitiba, em sentença prolatada na data de 7/3/2005, determinou que a Universidade Federal do Paraná (UFPR) efetuasse a matrícula de uma candidata ao curso de Zootecnia, justamente por entender que as cotas raciais não se justificam. Na sua decisão, o juiz fez questão de assentar que ?não há diferença substancial no quesito ?conhecimento? entre pretos, pardos, índios, amarelos ou brancos. A quantidade de conhecimento adquirido por uma pessoa durante sua vida não depende de sua cor, mas do acesso que ela teve aos meios para aquisição desse conhecimento. No momento em que um candidato está sendo submetido a uma prova de acesso a uma Universidade, não importa a pigmentação de sua pele, mas, tão somente, o conhecimento que pode demonstrar?. In: https://secure.jurid.com.br/new/ jengine.exe/cpag?p=jornaldetalhejornal&ID=8685; acessado em 21/1/08

Posição antagônica, entretanto, foi levantada pelo Prof. José Geraldo de Sousa Júnior, da Faculdade de Direito da UnB, ao considerar que desde a Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e intolerância Correlata, realizada em Durban (África do Sul), em setembro de 2001, a rejeição ao racismo teria adquirido força normativa no Direito brasileiro, ensejando a eliminação de possível controvérsia sobre a constitucionalidade de iniciativas de caráter afirmativo. Para o Prof. Sousa Jr., a política de cotas não pode ser considerada contrária ao princípio da igualdade, já que tem por objetivo remediar situações desvantajosas, ainda que impliquem tratamento favorável a um dado grupo social. Além disso, a autonomia universitária é prerrogativa assegurada pela Constituição Brasileira, o que dá às universidades a liberdade de adotar regras próprias nas áreas administrativa e acadêmica. [In: http://www.unb.br/ admissao/ ;acessado em 21/1/08 ]

Indubitavelmente, a polêmica não se encerrará tão cedo. Vale lembrar que só com relação à UFPR cerca de 70 demandas judiciais foram propostas desde 2005, sendo a ação de Elis a quarta a ter sentença favorável na instância inicial. Havendo recurso por parte da instituição, a matéria subirá à apreciação do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4.ª Região, com sede em Porto Alegre.

Questão menos problemática tem se verificado com relação às cotas para alunos de escolas públicas, muito embora alguns magistrados optem por validar a diferenciação apenas no sentido de igualar os candidatos no plano do conhecimento, ou seja, no aspecto avaliado pelos concursos de vestibular. Dentre outros, é o caso da decisão do juiz federal Silva Filho, para quem o critério nestes casos não é a situação econômica, mas o fato da candidata ter cursado quase integralmente os ensinos fundamental e médio no sistema público de ensino, que, segundo ele, não tem se mostrado capaz de preparar os alunos para que ingressem na Universidade. [In: https://secure.jurid.com.br/new/ ; acessado em 21/1/08]

De minha parte, não vejo tanto a matéria pelo vértice da questão racial, quando não há como negar que a grande desigualdade no país se dá no terreno sócio-econômico. Em outras palavras, se afrodescendentes disputam vagas em desvantagem no vestibular o fato não reside em serem negros, mas sim pessoas inseridas no quadro de pobreza e/ou miséria que ainda vige no país; não gozam de acesso isonômico ao ensino superior apenas porque não sejam brancos, mas pelo fato de serem pobres. Em decorrência, também me obrigo a discordar do discurso liberal exclusivamente focado nas mazelas da educação pública como fonte definidora da validade das cotas intituladas ?sociais? (estudantes de escolas públicas). Por outro lado, entendo ser pertinente um sistema de cotas raciais enquanto prática compensatória eventual na ausência de políticas públicas eficazes de transformação social e eliminação da desigualdade institucionalizada.

A realidade brasileira aponta para altos índices de pobreza, miséria e exclusão social. E a Constituição Brasileira assevera que um dos objetivos fundamentais da República consiste em ?erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais? (art. 3.º, III), bem como ?promover o bem de todos?, sem preconceitos e discriminações (art. 3.º, IV). Logo, é categórica a obrigação do Poder Público, em todas as suas esferas ou instâncias, de adotar medidas e instrumentos que assegurem a igualdade de oportunidades, independentemente de origem, raça, sexo, cor e idade. Motivos relevantes para reconhecer-se o sentido humanitário da política de cotas ?sociais? (que não se confunde com ?cotas raciais?) nas instituições de ensino superior, já que oportuniza a correção de desvios sócio-econômicos crônicos e representa um fator de restauração da dignidade do ser humano, tanto individual quanto coletivamente.

Wagner Rocha D´Angelis é advogado e professor universitário, especializado em Direito Internacional e Direitos Humanos; Observador Jurídico da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Corte de San José da Costa Rica). E-mail: dangelis@wagnerdangelis.adv.br; Blog: http://professorwagner.blog.terra.com.br.

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