O debate público sobre o alcance da Lei da Anistia (1)

“Art. 1.º – É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. Parág. 1.º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. Parág. 2.º – Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal” (Lei n.º 6.683,de 28/8/1979).
Pela imprensa, generalizou-se o debate sobre o alcance da lei da anistia, de 1979, envolvendo ministros de Estado, militares, juristas e entidades associativas. Com a intervenção do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, remetendo a questão ao Judiciário, restaram, apenas, os posicionamentos e manifestações individuais. Diante da importância da questão, eis alguns pontos desse debate.

O presidente nacional da OAB Cezar Britto e outros juristas como o professor da Faculdade de Direito da USP Fábio Konder Comparato, e o professor Dalmo de Abreu Dallari, encabeçam a lista de assinaturas do Manifesto Público em prol do Debate Público Nacional sobre o alcance da lei de anistia. No documento, composto por assinaturas de pesquisadores, advogados, professores, autoridades e membros de entidades sociais, reafirmam o apoio aos pleitos na Justiça dos perseguidos políticos e em prol da imprescritibilidade de crimes como a tortura e responsabilidade por desaparecimentos. Segundo o Manifesto, a jurisprudência internacional reputa como crime permanente o desaparecimento forçado, até que sua elucidação se complete. Ainda considera crime contra a humanidade todo o crime de tortura cometido o período da ditadura. “Pleitear a não apuração desses crimes é defender o descumprimento do Direito e expor o Brasil a ter, a qualquer tempo, seus criminosos julgados em Cortes Internacionais – mazela que, desafortunadamente, já acometeu outros países da América Latina”, traz o manifesto.

Manifesto

“Manifesto Público dos Juristas em Prol do Debate Público Nacional sobre o Alcance da Lei de anistia – A comunidade jurídica abaixo assinada assiste a manifestações públicas em oposição ao debate sobre os limites da Lei 6.683/1979.

Imprescindível, portanto, que venha a público manifestar:

1. Encontramo-nos em pleno processo de consolidação de nossa democracia. Dito processo dar-se-á por concluído quando todos os assuntos puderem ser discutidos livremente, sem que paire sobre os debatedores a pecha de “revanchismo” ou a ameaça de desestabilização das instituições. Só são fortes as instituições que permitem o debate público e democrático e com ele se fortalecem;

2. A profícua discussão jurídica que ora se afigura não concerne à revisão de leis. Visa, em verdade, a aferição do alcance de dados dispositivos. É secundada por abundante doutrina jurídica e jurisprudências internacionais, que crimes de tortura não são crimes políticos e sim, crimes de lesa-humanidade. A perversa transposição deste debate aos embates políticos conjunturais e imediatos, ao deturpar os termos em que está posto, busca somente mutilá-lo – atende apenas aos interesses daqueles que acreditam que a impunidade é a pedra angular da nação e que aqueles que detêm (ou detiveram) o poder, e dele abusaram, jamais serão responsabilizados por seus crimes;

3. O Brasil é signatário de numerosas convenções internacionais relacionadas à tortura e à tipificação dos crimes contra a humanidade, considerados imprescritíveis pela sua própria natureza e explicitamente assim definidos. Desde 1914, o Brasil reconhece os princípios de direito internacional, mediante a ratificação da Convenção de Haia sobre a Guerra Terrestre, que se funda no respeito a princípios humanitários, no caráter normativo dos “princípios “jus gentium’ preconizados pelos usos estabelecidos entre as nações civilizadas, pelas leis da humanidade e pelas exigências da consciência pública”. O Estado brasileiro reiterou o compromisso com a comunidade internacional em evitar sofrimento à humanidade e garantir o respeito aos direitos fundamentais do indivíduo, ao assinar a Carta das Nações Unidas, em 21 de julho de 1945. O Estatuto do Tribunal de Nuremberg ratificado pela ONU em 1946 traz a definição de “crimes contra a humanidade”, as Convenções de Genebra de 1949, a Convenção sobre a Prevenção e a Repressão do Genocídio e o recente Estatuto de Roma, enfatizam a linha de continuidade que há entre eles, não deixando dúvidas para a presença em nosso ordenamento, via direito internacional, do tipo “crimes contra a humanidade” pelo menos desde 1945. Além disso, é consenso na doutrina e jurisprudência internacionais que os atos cometidos pelos agentes do governo durante as ditaduras latino-americanas foram crimes contra a humanidade. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, neste sentido, consolidou entendimento que os crimes de lesa humanidade não podem ser anistiados por legislação interna, em especial as leis que surgiram após o fim de ditaduras militares.

4. A jurisprudência internacional reputa crime permanente o desaparecimento forçado, até que sua elucidação se complete bem como considera crime contra a humanidade o crime de tortura. Pleitear a não apuração desses crimes é defender o descumprimento do Direito e expor o Brasil a ter, a qualquer tempo, seus criminosos julgados em Cortes Internacionais – mazela que, desafortunadamente, já acometeu outros países da América Latina. Lembremos que ademais da jurisdição nacional, há a jurisdição penal internacional e a jurisdição penal nacional universal.

5. Nunca houve no Brasil uma legislação de anistia que englobasse os crimes praticados pelos agentes do Estado brasileiro durante a ditadura militar instaurada em 1964. A Lei 6.683/1979 concede anistia apenas aos crimes políticos, aos conexos a esses e aos crimes eleitorais, não mencionando dentre eles a anistia para crimes de tortura e desaparecimento forçado, o que afasta sua aplicabilidade nessas situações. A Constituição de 1988 que em seu art. 8.º do ADCT, anistiou todos os perseguidos políticos e assim é feito pela Lei 10.559/02 -, não refere, em nenhum momento, a anistia às violações de Direitos Humanos. Nesse sentido, não cabe afirmar que os crimes de tortura e de desaparecimento forçado foram anistiados. Tais crimes são, portanto, crimes de lesa humanidade, praticados à margem de qualquer legalidade, já que os governos da ditadura jamais os autorizaram ou os reconheceram como atos oficiais do Estado.

6. Os cidadãos brasileiros que se insurgiram contra o regime militar, e por contestar a ordem vigente praticaram crimes de evidente natureza política, foram processados em tribunais civis e militares e, em muitos casos, presos e expulsos do país mesmo sem o devido processo legal. Além disso, quando presos, sofreram toda sorte de arbitrariedades e torturas. Depois de julgados, foram anistiados pela lei de 1979 e pela Constituição. Por que os crimes dos agentes públicos, que nem sequer podem ser caracterizados como crimes políticos, devem receber anistia sem o devido processo? Não se trata de estabelecer condenação prévia, ao contrário, o regime democrático pressupõe a garantia do mais absoluto e pleno direito de defesa, devido processo legal e contraditório válido a qualquer cidadão.

7. O direito à informação, à verdade e à memória é inafastável ao povo brasileiro. É imperativo ético recompor as injustiças do passado. Não se pode esquecer o que não foi conhecido, não se pode superar o que não foi enfrentado. Outros países tornaram possível este processo e fortaleceram suas democracias enfrentando a sua própria história. Ademais, nunca é tarde para reforçar o combate contra a impunidade e a cultura de que os órgãos públicos têm o direito de torturar e matar qualquer suspeito de atos considerados criminosos. Os índices de violência em nosso país devem-se muito ao flagrante desrespeito aos direitos humanos que predomina em vários setores da nossa sociedade, em geral, em desfavor das populações menos favorecidas.

É assim que os juristas abaixo assinados manifestam-se em apoio a todos aqueles que estão clamando à Justiça a devida prestação. Manifesta-se em apoio ao Ministério Público Federal, ao Ministério da Justiça e à Secretaria Especial de Direitos Humanos pelo cumprimento de seus deveres constitucionais e por prestarem este relevante serviço à sociedade brasileira e à democracia. E ainda, por fim, presta solidariedade a todos os perseguidos políticos que, a mais de três décadas, fazem coro por uma única causa, a própria razão de ser do Direito: que se faça a Justiça”.

Perdão e esquecimento

A punição de torturadores que atuaram durante o regime militar, defendida pelos ministros Tarso Genro, da Justiça, e Paulo Vannuchi, dos Direitos Humanos, e criticada duramente pelo ministro da Defesa, ex-ministro do STF Nelson Jobim, não é consenso entre juristas e cientistas políticos. No centro da polêmica, está a interpretação da Lei da Anistia, que perdoou todos os crimes políticos ou que foram cometidos com motivação política desde 1961. Aprovado em 1979, durante a negociação da abertura, o texto permitiu o retorno dos exilados e beneficiou igualmente militantes de esquerda e militares.

Ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o jurista Carlos Velloso é contrário a uma revisão da lei. “Também houve crimes do lado dos opositores ao regime. Mexer com uma coisa dessas pode gerar uma bola de neve. É um assunto superado. A Lei de Anistia é peremptória, e estabelece um esquecimento, um perdão para os dois lados. Foi uma pedra colocada sobre o ocorrido. Também houve crimes do lado dos opositores ao regime. Mexer com uma coisa dessas pode gerar uma bola de neve. Isso não seria bom para a democracia brasileira. Sob o ponto de vista político, é desastroso. Sob o ponto de vista jurídico, é difícil imaginar uma mudança na lei”.

Ex-presidente do STF, Nelson Jobim disse que a Lei da Anistia já atingiu seus objetivos, sendo o principal a pacificação nacional após o fim da ditadura. Para ele, “mudar essa legislação seria o mesmo que revogar aquilo que já foi decidido anteriormente”. O entendimento é compartilhado pelo atual decano do STF, Celso de Mello. Ele já disse que a legislação nacional não permite a punição de crimes cometidos durante o regime militar e que a Lei da Anistia foi equânime, sem privilegiar qualquer um dos lados. “Reabrir o debate pode ser uma caixa de surpresas. A sociedade pode correr este risco sem saber o que tem dentro da caixa”.

Para Luiz Werneck Vianna, professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), os defensores da punição aos torturadores fazem sua análise apenas sob a ótica dos direitos humanos. Ele pondera que a sociedade terá mais ganho se não mexer em feridas do passado. “Reabrir o debate pode ser uma caixa de surpresas. Não se sabe o que vai se retirar dela, o bem ou o mal. A sociedade pode correr este risco sem saber o que tem dentro da caixa”. Biógrafa de Ernesto Geisel, o general que começou o processo de abertura, a cientista política Maria Celina D’Araujo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), diz que o perdão aos torturadores foi negociado pelos militares durante a transição democrática. Ao devolver o poder a um governo civil, diz ela, as Forças Armadas queriam evitar qualquer clima de revanchismo. Por isso, teria prevalecido a interpretação de que a Lei de Anistia beneficiaria inclusive quem torturou. “Por que aqui este assunto ficou intacto? Porque na transição brasileira isso foi um acordo feito com os políticos da época, Tancredo, Sarney e Forças Armadas, no sentido de que a anistia seria assim” – afirma Maria Celina (em O Globo, 4/4/08).

Já os militares da reserva, com a presença de alguns integrantes da ativa, realizaram ato público para repudiar a iniciativa. Na reunião, no Clube Militar, foi divulgada nota classificando a proposta de revisão da Lei da Anistia como extemporanea, imoral e fora de propósito.
 
Isso é como uma ferida…

Isso é como uma ferida, se você cutucar sangra, afirmou o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que decidiu que o Executivo não discutirá a interpretação ou a revisão da Lei de Anistia, pois o debate deve ser conduzido pelo Judiciário.

O ministro Tarso Genro relatou ao Presidente Lula o que foi conversado na audiência pública da Comissão de Anistia do ministério e enfatizou que em nenhum momento propôs a revisão da Lei de Anistia no encontro: “Ninguém, em nenhum momento, pediu a revisão da Lei de Anistia. Para mim, este assunto está encerrado. Não há nenhum embaraço do governo em relação às Forças Armadas.

Obviamente o presidente aceitou e tomou conhecimento dessa orientação através do meu relato. O presidente orientou que qualquer interpretação a respeito da Lei da Anistia é uma interpretação do Poder Judiciário. O presidente consolida e orienta que todas as questões relacionadas à Lei da Anistia sejam direcionadas para o futuro. O governo continua trabalhando com as câmaras que julgam os processos de anistia e continua também trabalhando a questão da memória da informação”.

“A interpretação padrão, no Brasil, é de que a Anistia perdoou os dois lados em nome de uma reconciliação nacional. Mas, do ponto de vista do direito
internacional, é inaplicável qualquer anistia. A tortura é um crime cuja gravidade impede sua prescrição. É dever do Estado investigar, processar e punir esse
tipo de violação dos direitos humanos, sob o risco de a impunidade gerar uma
violação continuada da ordem internacional” (Flávia Piovesan, da PUC-SP e da Universidade Pablo de Olavide, da Espanha).

Edésio Passos é advogado e ex-deputado federal (PT/PR). edesiopassos@terra.com.br